A porta se fechou hermeticamente. Aquela pequena sala foi planejada para servir de contenção para proteger o restante do módulo caso a câmera de compressão fosse comprometida e perdesse pressão atmosférica. Como regra, poderia ser aberta dos dois lados, com esquemas de segurança para evitar a abertura indevida caso os sensores de pressão apontassem alguma anormalidade. Porém, não era qualquer pessoa que tinha fechado a porta. Era Harmonia, com respiração ofegante, mordendo os lábios e mantendo os olhos pontiagudos como se uma leoparda estivesse analisando a presa. A garota, que vivia em uma simbiose com os equipamento e sistemas da base, havia bloqueado a abertura pelo outro lado. Em príncipio, só ela poderia comandar aquela barreira intransponível.

Se vestiu com o traje de atividade externa, uma perfeita roupa branca de astronauta. Checou os encaixes, o tanque de oxigênio, a bateria, a lanterna, os sistemas de suporte a vida. Era complicado se movimentar com todo aquele peso mesmo na gravidade marciana, mas Harmonia se movimentava com a força do ódio. Olhou através da pequena escotilha que mostrava a tarde do planeta vermelho, a planície rochosa sem fim a vista. Lugar perfeito para um isolamento social. Assim que estava diante da porta que dava acesso a sala de pressurização, o alto-falante atrás de si chamou seu nome.

— Harmonia, o que pretende fazer?

Era Alexander, do outro lado, tentando abrir a porta mas o visor só repetia em letras garrafais “MANUAL LOCKED”. Para dizer a verdade, ainda era possível a porta ser aberta pelo outro lado, mas envolvia força física, tempo e acesso a pequenos compartimentos na superfície do objeto. Um desbloqueio completamente mecânico.

A garota pausou alguns segundos com o dedo pousado sobre o botão de acesso à câmera de compressão. Titubeou uma resposta, a boca dentro do capacete sugou um gole de ar, mas desistiu. Deixa pra lá, pensou. Entrou na câmara e a porta se fechou. Seu pai conseguia ouvir o ruído abafado das válvulas da câmera de compressão sugando ar do cubículo para se igualar a pressão da atmosfera externa, mas mais nada poderia fazer.

Os tons vermelhos-alaranjados da imensidão de Planitia Arcadia mais uma vez refletiam de forma côncava no acrílico espacial de seu capacete. Deu os primeiros passos em direção a terra fofa, deixando marcas de pegadas. Silêncio. Harmonia só escutava sua própria respiração e seu coração batendo. Ódio, raiva, indignação, revolta, ansiedade, desapontamento. Conforme andava e se afastava da base, parecia que seus sentimentos ficavam para trás, se dissolvendo na inóspita atmosfera.

— Já estava com saudades.

Disse em voz alta direcionada à paisagem rochosa.

Os 12 módulos em formato de redoma estavam dispostos de forma que parecia um semicírculo branco-acinzentado quando visto de cima. Um pouco mais afastado dos módulos, 2 plataformas de pouso haviam sido construídas para receber as naves autônomas de suprimento, e em breve, a de novos moradores. Entre as plataformas e a base, um conjuntos de painéis solares um tanto empoeirados geravam a energia necessária para seus habitantes. Uma operação de limpeza profunda manual dos painéis estava programada para daqui a 5 dias, já que os limpadores ultrassônicos não davam conta da quantidade de detritos. Junto a eles, uma miríade de sensores: anemômetro, termômetro, de incidência solar, contador Geiger, sensor de raios cósmicos, sismômetro. Do lado oposto do conjunto de painéis, algumas antenas parabólicas e de quarto de onda. Já perto da entrada da base, sob uma cobertura térmica resistente, o Mars Long Range Roving Vehicle, carinhosamente apelidado de Red Beetle. Harmonia removeu a manta térmica, levantando uma fina porém densa poeira ao alto, revelando uma espécie de quadriciclo altamente tecnológico. Tinha espaço para 4 ocupantes, as rodas não tinham pneus mas eram feitas de uma malha metálica resistente e deformável, não havia teto nem porta, apenas assentos, compartimentos para carga e uma antena parabólica para comunicar via satélite, lembrando um carro de golfe gigante. Desconectou o cabo que ligava a bateria do veículo à base, sentou no assento do motorista, deu a partida e acelerou. O veículo era extremamente lento para os padrões terrestres, com velocidade máxima de 20 quilômetros por hora, mas seu principal objetivo era levar os astronautas, equipamentos e amostras pesadas dos campos de pesquisa para a base, e vice-versa.

A base ia ficando para trás. Harmonia seguiu uma direção qualquer sem pensar muito, e para a road trip ficar perfeita só lhe faltava alguma música tocando dentro do seu capacete.

Sendo Harmonia, ela já tinha uma carta na manga. Apertou alguns botões no computador do traje cujo visor ficava na parte interna do antebraço e logo em seguida uma música começou a tocar dentro do seu capacete.

— Essa é das antigas — falou consigo mesma ao ouvir os primeiros acordes.

Seus dedos tocavam no volante sincronizado com o ritmo da música. Era como se Harmonia sentisse pulsar as batidas da canção direto em seu peito, embora os pequenos alto-falantes ficassem apenas dentro do capacete de visor transparente. As mãos por dentro das luvas seguravam de forma rígida o volante do rover enquanto a garota entrava em sincronia com a música, sem perder o fôlego:

So many times that I wish we could be anywhere but here
So many times that I wish I could see what you see so clear, so clear

Ela cantava em voz alta completamente desafinada, mas pouco importava. Quanto mais longe ficava da base, mais ela se acalmava. Havia uma ligação especial entre Harmonia e aquela imensidão inóspita de Marte que ninguém compreendia. Ficar sozinho e isolado naquela planície vazia recoberta de pedregulhos seria um terror lovecraftiano para a maioria das pessoas, inclusive para os moradores da base, já que ninguém nunca foi tão longe da colônia solitariamente. Mas Harmonia era diferente. Marte era sua casa. Por fora daquele minúsculo espaço pressurizado, em quase completo silêncio, uma nuvem de poeira fina e vermelha se levantava detrás do Red Beetle. Quase uma tempestade de areia, anunciando para as solitárias rochas e as crateras pré-historicas que Harmonia, a garota de Marte, havia retornado. A planície respondia de volta, formando redemoinhos tênues ao longe como tornados. O impacto das rodas de trama de liga metálica nas rochas, que reverbarava no assento da motorista, passava despercebido por ela, que continuava a entoar solitariamente mais alguns versos de Someday, da já inexistente banda One Republic:

Yeah, one day down the line
Before we both run out of time, you’re gonna see
That someday we’ll be all that we need
Someday we’ll be all that we need

A vastidão inexplorada de Arcardia Planitia lhe dava uma aconchegante boas-vindas. Harmonia se sentia em casa.



***



Alexander estava bufando de raiva quando percebeu que Harmonia havia partido com o rover para o norte, conforme indicava uma das telas da sala de controle. Era um dos raros momentos que seu rosto estava avermelhado e projetava de forma protudente as veias da testa. Seus olhos estavam arregalados e seus dentes cerrados seguravam um horrível palavrão. A feição explosiva assustavam seus colegas, que não lembravam de algo parecido. Por dentro, sentia força suficiente para esmagar com as mãos um meteorito de ferro. Tecnicamente estavam selados dentro da base já que a execução do desbloqueio mecânico da porta da sala de contenção seria trabalhosa demais e além disso nada poderiam fazer, a garota já tinha partido. A maior preocupação dos habitantes era caso começasse algum incêndio na base e precisassem evacuar prontamente. Mas em todos esses quase 20 anos de assentamento nada parecido havia acontecido, seria extremamente improvável acontecer justamente no dia que uma adolescente rebelde resolvesse trancá-los. Era mais provável os prótons decaíram e o Universo se extinguir. Não que num incêndio catastrófico eles sobreviveriam por muito tempo no ambiente externo.

Logo, toda esta improvável preocupação desapareceu. A porta havia mudado de “MANUAL LOCKED” para “LOCKED”. Ou seja, havia retornado ao funcionamento normal, travando automaticamente mas permitindo o acionamento manual caso necessário. Alexander, ao perceber isso, socou uma das mesas da sala de controle, que fez um estrondo como trovão. Lucciano, o chefe da missão, deu um salto ao ouvir o baque sonoro. Naquela sala ainda estavam junto com eles Aamir Sahad, ex-piloto e que era o principal mecânico do Red Beetle, Bella Dior, microbiologista, Oslo Nostrom, engenheiro mecânico e que já estava preparado as ferramentas para destravar a porta, e Luana. Todos se viraram para Alexander, mudos, surpresos pelo incomum aspecto emotivo do pai marciano.

— Amor, se acalme, por favor. Ela é inteligente, não vai fazer nada perigoso — Luana se aproximou de Alexander apoiando sua mão sobre o punho fechado dele em cima da mesa, mas o homem recuou o braço.

— Ela pode ser inteligente, mas é irresponsável! E se ela cai num precipício? Redemoinhos, radiação, qualquer coisa! Tem um motivo para que ninguém saia sozinho com o rover, se uma válvula do tanque falhar, ela vai fazer o quê? Não tem ninguém pra ajudar ela. E deixar a gente preso, isto é totalmente irresponsável! Se fosse um de nós fazendo isso já estaríamos respondendo a um processo disciplinar.

— Mas ela não é uma de nós! — Luana percebeu sua própria exaltação e tentou controlar a sua voz aguda, que certamente ecoou por alguns dos corredores. Inspirou profundamente e continuou: — Amor, estamos ficando nervosos, ok? Tente pensar mais racionalmente. Aqui é a vida dela, nós nunca vamos conseguir compreender.

Alexander fitou os olhos de Luana e suspirou. Começou a andar de um lado para outro da sala com as mãos na cabeça tentando puxar algum fio de sanidade. Seu coração palpitava querendo sair pela garganta, e apesar de ter apenas 43 anos não se sabia os efeitos desconhecidos sobre seu músculo vital após ter vivido em Marte quase a metade desses anos todos. Se seu coração estivesse fraco poderia ter um treco ali mesmo, e isto seria pior para todo mundo. Só os passos acelerados do homem ecoavam pelo ambiente enquanto todos observavam aquele irreconhecível em silêncio. Os demais estavam constrangidos pela briga de família que evitavam abrir a boca, sem conseguirem quebrar o gelo. Aamir botou os olhos de volta para as telas principais de controle e assistia o triângulo na tela se afastar cada vez mais da base a 20 quilômetros por hora, a velocidade máxima do veículo. O rover já tinha sido reparado várias vezes, mas seria perigoso se ele quebrasse longe da base e Harmonia não tivesse oxigênio suficiente para retornar. Ninguém sabia ainda quantos tanques a garota havia levado consigo, teriam que ir até a sala de contenção e verificar o estoque.

— Tenta de novo, Aamir. Ela vai ter que responder — interrompeu o silêncio.

Alexander o instruiu a tentar se comunicar com a garota pela décima vez. Nenhuma das vezes tiveram resposta. Sabiam que Harmonia ou os ignorava ou havia desligado o rádio, o que daria na mesma. A única indicação de que ela estaria bem neste “passeio” era o triângulo que continuava a ser mover na tela que rastreava a posição do veículo.

— Puta que me pariu, esta garota — frustrado, seu pai sentia que sua cabeça estava prestes a explodir.

— Alex, acalma. Ela vai voltar — a tentativa de Luana para apaziguar a situação saiu pela culatra.

— Você que fica incentivando ela a fazer estas coisas. Céus! Que acha que ela pode fazer tudo, isso, aquilo, viu o que criou?

Luana cerrou os olhos e inclinou a cabeça em reprovação. Em toda a briga de casal é sempre um clichê as trocas de culpas.

— Você toma cuidado com o que fala! Você passou a vida inteira superprotegendo ela, dizendo que ela não podia fazer não sei o que porque radiação, porque ossos fracos, porque coração, e se a criei você criou junto também, então não venha pra cima de mim com esse tipo de conversa!

— Ela não é normal, Luana, ela não é uma criança normal. Por isso, pense, ela precisa tomar cuidado com tudo. Você tá querendo que ela sofra doente por aí? — Alexander retrucou.

— Você quem mexeu os palitinhos para ela não ir na próxima missão — Luana apontava incisivamente com o dedo no rosto de Alexander ao mesmo tempo que avançava em sua direção —, esperava que ela reagiria como? Tá colhendo o que plantou!

— E você aceitou também, agora tá se fazendo de desentendida?

Os demais, percebendo que a discussão era um problema familiar e iriam agregar em nada na solução, discretamente saíram da sala de controle. As vozes exaltadas do casal reverberavam pelos corredores que davam acesso a sala.

— Porque você pediu, porque tava confiando em você, mas eu não queria. Ela pra ela ir, ela iria se não fosse por você. Eu achava que era a melhor escolha, mas quer saber, já me arrependi. Eu vou fazer de tudo para ela estar na próxima missão. Agora você assuma o resto das consequências!

— Você não se preocupa com ela, ela pode morrer ali fora porque você acha que ela precisa de liberdade e…

Antes mesmo de Alexander encerrar a frase, Luana deu um bofete no seu rosto. Era a primeira vez que ela tinha agido desta forma, mas ser instigada a imaginar pelo seu “marido” a própria filha morta era o estopim desta situação estressante. Alex ficou sem palavras, sentindo a ardência do tapa em sua bochecha esquerda, que agora continha as marcas dos dedos. Luana arregalou os olhos surpresa consigo mesma, virou-se e saiu apressadamente da sala. Alexander puxou uma cadeira, sentou-se e apoiou os braços sobre uma mesa, cobrindo a boca com as mãos.

Eram 20 anos dentro daquela minúscula colônia. Perguntou a si mesmo se já não estavam loucos.



***



A pessoa mais solitária do sistema solar. Talvez da galáxia. Quem sabe do universo. Harmonia tentava se nomear de forma depreciativa quando percebeu que havia se afastado 20 quilômetros da base, segundo mostrava o indicador no veículo. Não existindo algo parecido com GPS no planeta vermelho, o Red Beetle se localizava usando algumas antenas em solo distribuídas de forma precisa ao redor da colônia e ajuda de um sistema inercial. A desvantagem é caso o rover estivesse em região com muitos obstáculos ou abaixo da linha do horizonte, como em cânions, crateras ou devido a curvatura do planeta, sua posição se tornava imprecisa ou até mesmo desconhecida. Conhecendo as peculiaridades deste sistema, percebeu que já havia se afastado demais da base e que era hora de parar e apenas observar a paisagem. Não que ela necessariamente se perderia sem o sistema de navegação, porque como não poderia deixar de ser, Harmonia conseguiria navegar usando mapas estáticos, observando características do terreno, a posição do sol e até mesmo das estrelas — se elas fossem facilmente visíveis sob a atmosfera empoeirada.

O painel do veículo também indicava 57% de bateria. Talvez ela tivesse perdido um pouco a mão — ou melhor, o pé — nas acelerações do veículo e isto estava abaixo do que ela planejava para a viagem de volta. Queria ter pelo menos dois terços para contar com os erros de medição e a perda da eficiência da bateria em baixa carga. Mas já estava longe, e se pelo menos tivesse a colônia visível em seus olhos não se importaria de ter que andar 1 ou 2 quilômetros empurrando o veículo. Problemas para a garota de Marte do futuro, pensou.

Girou a cabeça analisando o lugar e observou um morro a algumas centenas de metros à sua direita. O sol estava naquela direção e imaginou que seria agradável observar o início do pôr-do-sol antes de ter que retornar à base para não ter que enfrentar as temperaturas negativas da noite marciana. O morro fazia parte da borda de uma cratera e tinha umas centenas de metros de circunferência. Conseguiria ter uma visão incrível de tanto da formação geológica quanto do sol, ao mesmo tempo. Girou o volante do rover para a direita e acelerou em direção ao aclive que estava próximo. A estrela obfuscava um pouco sua visão fazendo-a cerrar os olhos, ainda que o capacete tivesse um escurecedor eletrônico automático. Ela só focava naquela rampa alaranjada, plana, uma rodovia para o céu. Relaxar ao som do silêncio e apreciar a paisagem marciana.

Harmonia sentiu flutuar. O gelo na barriga. Instintivamente pisou no freio. Era tarde demais. A garota e o Red Beetle agora caíam a 3,7 metros por segundo ao quadrado em direção a um precipício que tinha sido obscurecido pela luz do sol obfuscando seus olhos, logo antes do morro para a borda da cratera. Uma queda que parecia em câmera lenta. O filme de sua vida passou diante de seus olhos, como ela tinha lido em algum lugar da interplanet quando as pessoas relatavam o que sentiam e viam momentos da morte provavelmente certa. Era impossível, pensava na época, como toda a minha vida vai passar em poucos segundos? Agora estava convencida. De forma automática soltou as mãos do volante para tentar proteger o rosto, cobrindo o material transparente do capacete. Tão logo, sentiu seu tórax bater violentamente contra o volante quando o rover atingiu o fundo do buraco, seus braços foram jogados para frente, seu capacete atingiu o painel e sua cabeça chacoalhou violentamente dentro dele. A cor ardente de Marte deu lugar à escuridão de um espaço sideral sem estrelas.

O foguete. Mais de uma centena de decibéis chacoalava o chão quando seus motores foram acesos levantando uma nuvem intensa de poeiras com gases de exaustão. O assento tremia, pulava e balançava, o corpo colava-se nele se afundando. O barulho ensurdecedor suprimia qualquer tentativa de comunicação verbal. O gigantesco foguete partia da superfície de Marte em direção ao céu, em direção ao planeta azul. A garota, vestida como astronauta, segurava firmemente suas mãos nos apoios do assento durante a decolagem e ela sentia êxtase como nunca tinha sentido antes. Ao seu redor, dezenas de outros assentos vazios dispostos em círculos concêntricos, e em sua frente, um grande vidro gigantesco que mostrava a paisagem laranja se afastando para baixo dando lugar ao céu estrelado. O foguete não parava de subir e não parava de acelerar, as estrelas formavam riscos como em um timelapse, como se agora ela viajasse tão rápido, perto da velocidade da luz. De repente, a Terra surgiu na paisagem através do vidro, as estrelas sumiram e tudo que Harmonia viu era o planeta azul, os continentes, as florestas, o deserto. O som dos motores desapareceu completamente e a Terra aumentava cada vez mais de tamanho, e cada vez mais, até ocupar completamente a área do vidro. Harmonia percebeu que o foguete não iria parar e estava prestes a se colidir com o planeta quando tudo ao seu redor ficou distante e ela tivesse sido sugada para trás.

Aos poucos, seu estranho sonho dava lugar a um frio de tremer os ossos conforme ela retornava à consciência. O mundo que viu ao abrir os olhos estava de lado, o ambiente escuro e gelado no fundo de uma fenda entre dois paredões altos. Vagarosamente tateou o chão procurando orientação e conseguiu forças para ao menos levantar a cabeça, mas uma tontura a acometeu e teve que reverter o movimento. Sentia todo o corpo horrivelmente dolorido. Concussão? Ossos quebrados? Órgãos rompidos? Era o que Harmonia se perguntava, sem conseguir distinguir onde que doía mais ou menos. O equipamento em suas costas, especialmente os tanques de oxigênio, puxavam seu corpo para baixo como âncoras. Para sua sorte, eles estavam intactos. Ou melhor, era esperado que tivessem intactos devido a resiliência dos tanques para aguentar a pressão do gás.

Reuniu o que era possível de força para tentar se virar de barriga para cima. Se arrependeu em seguida do movimento ao perceber que os tanques a fazia pender a cabeça, como um besouro de cabeça para baixo. Mas não tinha mais forças. A pequena faixa do céu avermelhado entre os paredões escurecidos da fenda girou 90 graus. Observou as muralhas geológicas e estimou que teria caído uns 8 metros de altura. Se fosse na Terra muito provavelmente estaria morta. Reparou que uma grande rachadura havia recoberto parte do seu visor trasparente atrapalhando uma porção de sua visão periférica. Embora os capacetes fossem resistentes, não eram invulneráveis. Olhou para o lado esquerdo e viu o Red Beetle virado de cabeça para baixo com diversas peças espalhadas pelo chão. Procurou o pequeno visor no traje em seu braço esquerdo e percebeu que seu antebraço formava um L virado para trás, escondendo o visor. Não sentia dor ali especificamente, provavelmente a adrenalina ainda circulava em seu sangue. Soltou um breve riso desconfortável. Precisava acessar o visor. Cerrou os dentes se preparando para uma dor terrível, puxou a parte pêndula do antebraço com a outra mão até ambas as seções mais ou menos se alinharem, mas a dor não veio na intensidade que esperava. Sentia com certeza dor, mas era suportável. Cuidadosamente apertou alguns botões próximo ao visor e viu que a pressão de seu traje havia diminuído, indicando um vazamento, que poderia ser da rachadura no capacete, um rasgo qualquer do traje ou uma junta danificada. Obviamente, a previsão de autonomia do oxigênio havia diminuído.

Drasticamente. As 16 horas iniciais haviam se tornado apenas 4 horas e 38 minutos.

— Então isso… é o que significa estar fodida? — e soltou uma gargalhada irônica.

Harmonia tentou entrar contato via rádio com a base, chamando várias vezes no microfone, sem sucesso. Poderia ser porque seus equipamentos estavam danificados ou porque ela estava no fundo de uma fenda rodeada de paredões. Continuou e tentou e continuou, sem sucesso. Não lembrava também de nenhuma previsão de tempestade geomagnética, mas sua cabeça estava tao confusa que não tinha certeza. Apontou os olhos novamente para o Red Beetle revirado e estraçalhado na esperança que seu sistema de comunicação e a antena parabólica ainda fosse utilizáveis. Devido as enormes baterias, o rover poderia transmitir com muito mais potência do que os transmissores no traje e ainda poderia usar os satélites marcianos como retransmissores. Desvirar o pesado veículo seria impossível e não se tinha garantia que sua antena estivesse intacta o suficiente, pois agora ela apontada para o chão.

Só que era uma questão de sobrevivência. Harmonia não se deixaria morrer sem fazer nada. Terra a esperava.

— Você parece bom — levantou o braço direito abrindo e fechando o punho. Sem sentir incômodo no membro, usou-o para apoiar no chão reunindo forças do além para poder se levantar. Soltando grunhido de esforço conseguiu levantar a parte superior do corpo. Tinha conseguido ao menos se sentar.

A dor ficava cada vez menos geral e mais concentrada nos lugares feridos. Seu braço esquerdo. O peito e abdômen. Se quisesse viver, não tinha outra escolha além de vencer o sofrimento físico. Sentada no chão, começou a se arrastar em direção ao que restou do rover, pouco a pouco, dor a dor. Parecia uma eternidade chegar perto do veículo, mas ela não estava a mais de 2 metros dele. Quando conseguiu tocar o chassi do rover, usando apenas um lado do corpo, tentou empurrar o veículo de baixo para cima, na esperança de que se desvirasse. Mesmo com a baixa gravidade de Marte, as centenas de quilos do Red Beetle quase não se movimentavam quando a garota empurrou a carcaça na vã expectativa de um milagre. Era óbvio que ele não desviraria, mas Harmonia ainda não pensava muito claramente.

— Por que você é tão pesado? Merda.

Se deitou e esticou o braço direito. Havia um buraco entre o chão e o veículo que cabia uma pessoa deitada. Era o espaço entre o painel e os assentos dianteiros, que formavam um túnel deformado e escuro. Harmonia imaginou que se arrastasse para dentro e tivesse sorte conseguiria operar o painel e ativar os rádios de comunicação. Usando o braço como um remo para se arrastar no solo vermelho, aos poucos entrou no pequeno espaço escuro tentando localizar os botões do painel. A pior coisa que poderia acontecer ali seria um incêndio nas baterias assim que ligasse o veículo. Não tinha escolha. Com frio na barriga, achou o botão para ligar o veículo e pressionou. Nada. Nenhuma luz se acendeu. A frente do Red Beetle, onde ficava a maior parte dos eletrônicos, tinha sido severamente destruída. Soltou um murro de raiva no chão e sentiu dor no seu ombro direito. Mais um lugar arrebentado.

— Eu acabei com minha vida?

Pouco mais de 4 horas. Tinha acabado de perceber que ainda que conseguisse avisá-los da situação dificilmente chegariam a tempo. O Red Beetle era o único rover da colônia, o segundo só viria junto com a próxima expedição. Os 20 quilômetros a pé seriam impossíveis de serem cumpridos em 4 horas nos trajes marcianos.

Harmonia, racionalmente, de forma calculista, sabia que iria morrer.



***



— Oh-oh.

Aamir, que havia retornado à sala de controle depois de ter sido esvaziada pelo casal briguento, percebeu que a localização do Red Beetle havia sumido da tela. A parte mais preocupante era que a última posição conhecida era próxima da cratera Ignus Borealis, mas a precisão do sistema de localização não era melhor que algumas dezenas de metros. Sem ser alheio as características do terreno, observava um mapa topográfico da região, mostrando um terreno plano ao redor da cratera fatiado abruptamente por um precipício de vários metros de altura.

Também seria perfeitamente possível que a garota estivesse já no fundo da cratera, se ela tivesse a habilidade necessária para dirigir o rover em um declive acentuado e perigoso — habilidade que ela provavelmente possuía. Estando abaixo da linha do horizonte, o rover poderia ter dificuldade em enviar a localização correta ou até mesmo não enviar a sua localização. Entretanto, a antena parabólica deveria estar enviando algum tipo de dado via satélite para a colônia.

Mas nem mesmo isso. O monitor de telemetria indicava sem dados. Aamir sentiu gelar a espinha.

— Ela tá dando uma de esperta? — se perguntou em voz alta para si mesmo.

Tentou se enganar por alguns momentos, mas tudo foi ao chão quando observou o histórico da telemetria: os últimos dados indicavam uma aceleração vertical compatível com uma queda livre. Neste momento, Aamir assumiu pelo pior, puxou o comunicador e chamou Lucciano, que estava em um módulo distante. O chefe da missão percebeu a voz trêmula de Aamir enquanto o mecânico lhe explicava o que tinha visto na telas. Quase instantaneamente, Lucciano havia atravessado a colônia inteira e já estava na sala de controle.

— Já avisou os pais da garota? — perguntou Lucciano.

— Ainda não. Chamei você para um sanity check. Quero ter certeza que não estou vendo coisa errada.

Lucciano viu os dados de localização, a topografia, a falta de telemetria. Seus olhos se arregalaram.

— Vou chamá-los agora. Enquanto isso, continue tentando chamar Harmonia.

O chefe usou seu comunicador para entrar em contato com Alexander. Uma voz fraca, curta e grossa atendeu do outro lado.

— O que? Como assim, Lucciano!? Harmonia está desaparecida?

— Venha aqui para a sala, Alex. Rapidamente. Achamos que algo aconteceu — disse em tom sombrio.

Alexander correu pelos corredores, da sala de refeições até a sala de controle. No caminho, inevitavelmente passou em frente ao dormitório onde Luana estava, mas ignorou completamente o recinto. Porém, os passos pesados e rápidos chamou a atenção de Luana, que estava deitada no quarto, de barriga para cima, os olhos marejados, as olheiras evidentes e o cabelo bagunçado. Seu instinto materno foi instantaneamente ativado, ela se levantou, andou para a porta e saiu para o corredor. Seguiu Alex em direção a sala de controle, e antes mesmo de se aproximar já escutava do corredor de acesso os burburinhos dos 3 homens que ali estavam.

Assim que adentrou a sala, Luana viu Alexander como se ele tivesse envelhecido 30 anos, os olhos caídos, as mãos nos fios de cabelos, a respiração ofegante, a aparência desesperadora. Luana sentiu suas pernas se enfraquecerem.

— Harmonia? — perguntou como se já soubesse a resposta.

— Perdemos o sinal dela perto de Ignis Borealis. É uma região acidentada. Esta é a telemetria do Red Beetle — Lucciano, calmamente, explicou a situação.

Luana imediatamente ligou os pontos ao ver os dados nas telas. Levou a mão à boca em um misto de supresa e desespero e inspirou profundamente. Se perguntou se era algum pesadelo que estava vivendo. Sua visão balançou como se fosse desmaiar, mas se recompôs sabendo que tinha que pensar mais racionalmente. Perguntou a Aamir.

— Aamir, quando que é… a próxima passagem do MIRO2?

— Ah, ok — o homem começou a procurar no sistema as informações de órbita do Mars Intelligent Reconnaissance Orbiter 2, um satélite de resolução de 12 centímetros por pixel. Poderiam usá-lo para tirar fotos da região da cratera e procurar pelo rover ou por Harmonia. — Daqui 18 minutos. Programarei agora.

Luana puxou uma cadeira ao lado de Aamir, ignorando totalmente a presença de Alexander. Ela mesma começou a digitar com intensidade nos computadores, seus dedos furiosos no teclado faziam tanto barulho que os demais ali na sala se sentiam incomodados. O que ela estaria procurando?, se perguntavam ao ver a obstinência da mulher.

— Eu vou atrás dela agora. Não quero saber — Alexander disse determinado, enquanto andava em direção a saída da sala.

— Não temos veículo, Alex, você está ciente disso? — Lucciano perguntou.

— Irei a pé se necessário.

— São 20 quilômetros, você sabe o que está dizendo?

— Mesmo que fosse 200.

Lucciano olhou para Alexander, para Luana, para Aamir. Alexander está louco?, pensou, sem compreender a seriedade com que seu colega de missão dizia que andaria facilmente 20 quilômetros na superfície de Marte. Era impossível, levaria mais de 10 horas fora da base, não teria tempo para descansar se quisesse chegar até Harmonia a tempo, teria que percorrer todo o trajeto de volta novamente e ali não era a Terra. Pequenos problemas poderiam se tornar sentença de morte. Apesar do que indicava os dados, não tinham completa certeza que não era apenas um problema de telemetria ou dados corrompidos, poderia apenas ser uma coincidência devido ao terreno acidentado.

— Não temos 100% certos do que aconteceu. Não posso permitir você se arriscar para isso. Vamos esperar as imagens do MIRO antes de decidirmos. É extremamente arriscado.

— Cada minuto que passa é menos um minuto que ela tem de oxigênio. Você sabe disso, Lucciano — Alexander retrucou.

— Eu tenho responsabilidade sobre vocês. A segurança de todos é responsabilidade minha também. Não posso permitir que arrisque sua vida, vamos esperar…

Alexander se aproximou de Lucciano com o rosto ameaçador. O chefe da missão recuou até ser parado por uma mesa atrás de si, inclinando o tronco para trás quando Alexander, resoluto, perguntou:

— Você não tem filhos, não é?

— O que isso tem a ver?

— Você não entende, Lucciano. Enquanto não tiver, jamais vai entender.

Luana neste momento se levantou da cadeira, anunciado em voz alta.

— Eu também vou. Você não vai nos impedir. Ela é minha filha, não sua. A responsibilidade é minha — disse apontando o dedo indicador para o chefe.

— Mas eu sou o responsável pela colônia — Lucciano se recusava a permiti-los que pudessem sair da base para encontrar Harmonia. Se acontecesse algo com os três… Não queria imaginar esta terrível situação.

“Eu sou o responsável pela colônia”. Essa frase agora ecoava em sua cabeça, provocando uma longa cadeia de pensamentos. Harmonia era parte da colônia. Não era parte da missão, claro, mas era parte daquela mini-civilização. Não foi para isso que tinha sido eleito o chefe da base?, perguntou a si mesmo. Para guiar o desenvolvimento daquela nova sociedade. Para construir a base para as futuras gerações de humanos que vão viver em Marte. Para proteger a todos. Se tinha decidido se candidatar a líder, teria que liderar.

Lucciano coçou a cabeça, pensando um pouco. Não queria perder Harmonia, obviamente, mas também não queria colocar em risco os demais habitantes. Não se lembrava de passar por uma situação tão tensa nos 20 anos que viveu na colônia. A vida em Marte até que era tediosa, graças ao avanço tecnológico em exploração espacial nas últimas décadas. Após um intenso redemoinho de pensamentos, finalmente concluiu:

— Eu vou também. É minha obrigação, um capitão não abandona seu navio. E além disso, esta é uma situação em que ter mais pessoas pode ser útil — imaginou que talvez precisasse carregar uma Harmonia ferida ou inconsciente por toda aquela distância. — E temos a valiosa regra que ninguém pode sair sozinho. Se as circustâncias mudarem, Aamir nos avisa pelo rádio e retornamos à base, entendido, Aamir?

— Entendido.

Lucciano se aproximou de um microfone da sala de controle a anunciou a todos na base:

— Atenção todos os moradores de A Small Step. Estamos iniciando o protocolo de resgaste. Harmonia está desaparecida ao redor da cratera Ignus Borealis, a 20 quilômetros ao norte. Precisamos de voluntários na sala de vestimentas para acelerar a colocação dos trajes. Precisamos também de soluções em como transportá-la, caso esteja ferida, sem o Red Beetle, por toda esta distância. Peço ajuda de todos para resolvermos esta situação com sucesso.

Luana se aproximou de Aamir mostrando seu computador aberto:

— Nos ajude nisso aqui, por favor — apontou para a tela que mostrava informações de alguns dos robôs científicos na superfície de Marte. — Um destes podem nos ajudar e chegar antes em Harmonia do que nós.

— Com certeza Luana, farei todo o possível para ajudar Harmonia.

— Obrigada.

Tão logo os três aventureiros saíram da sala, outros exploradores começaram a aparecer oferecendo a ajuda que for. Aamir explicou para eles o que sabiam sobre Harmonia e o que planejavam fazer. A sala de controle começava a ficar pequena com tanta gente, e naquele ponto havia mais gente do que trabalho a fazer. O que poderia lhes dar a informação mais correta possível era esperar a passagem do satélite sobre a região para capturar as fotos de alta resolução. De qualquer forma, uma das colegas, Annie, se prontificou a ficar chamando no rádio, incessantemente.

Uma parte dos habitantes estava na sala das vestimentas, preparando os equipamentos, trajes e tanques de oxigênio. Em poucos minutos poderiam estar prontos para uma longa caminhada pela desolada superfície de Marte.

— Eu vou também! — Ye, afobada, surgiu abruptamente na sala, tomando fôlego. Alexander, que já vestia a parte debaixo do traje a fitou.

— Não precisa se arriscar, Ye. Estamos em três — disse, balançando as mãos em negação.

— Mas não há médicos aí, há?

— A caminhada é longa, Ye — ele respondeu.

Outros colegas preparavam mais um conjunto de equipamentos para Ye, que começava a se despir parcialmente para colocar a roupa interior do traje, feita de um material eletroreativo altamente tecnológico que cobria quase completamente o corpo, exceto o rosto, apertando mecanicamente a pele para emular a pressão atmosférica. A pressão no interior dos trajes era em torno de um terço da pressão atmosférica devido ao oxigênio puro utilizado, mas sem esta segunda pele, qualquer um que fosse fazer atividades externas precisaria de longos períodos nas câmaras de descompressão para evitar síndrome da descompressão. Esta roupa interna junto com oxigênio conseguiam simular uma pressão de 70% da atmosfera terrestre, quase a mesma dos antigos aviões comerciais.

Em menos de 5 minutos, os quatro aventureiros estavam prontos para partir. Fizeram a checagem dos sistemas de comunicação, suporte a vida, flexibilidade. Além dos equipamentos normais, levavam contâiner de água externo, tanque de oxigênio extra, fitas adesivas, equipamento de costura, maca dobrável, cordas, bateria de traje, imobilizadores de membros. Tudo que achavam que seria necessário para trazer Harmonia de volta. Por outro lado, o peso extra os deixaria mais devagar, forçando-os a fazer cálculos mentais em como distribuir estes pesos entre eles e pelo corpo.

Os quatro adentraram a sala de pressurização. Alexander observou Luana, em silêncio, sombriamente. A mulher desviou o olhar. Um sentimento de culpa misturado com arrependimento pairava sobre seu coração. Para piorar, tinha certeza que Alex a culpava por tudo isso. Balançou a cabeça sutilmente para varrer esses pensamentos, que tiravam o foco do resgate de Harmonia. Finalmente, a porta atrás deles se fechou hemerticamente, uma névoa de descompressão se formou dentro do recinto. Em seguida, a porta para o mundo externo se abriu, a paisagem avermelhada lhe davam boas-vindas.

— Vermelho. Como o inferno — pensou Alexander.



***



Harmonia se arrastou para fora do buraco. Tentou chamar mais algumas vezes a base pelo rádio no traje, sem sucesso.

— Não vou desistir, não vou desistir, não vou…

Repetia continuamente enquanto tentava de se pôr de pé, usando a agora sucata espacial de apoio. Cada movimento de torção no tronco que fazia provocava pontadas no peito, que ela suspeitava serem de fraturas nas costelas, e mesmo que se movimentasse lentamente eventualmente a dor se tornava quase insuportável. Não desistiu, apoiou o braço direito no veículo para se levantar, mas logo caiu de volta ao chão, grunhindo de dor. Virou o rosto olhando para a saída da longa fenda, a centenas de metros mais à frente, terminando na grande cratera. Aquele fio de luz ao final do túnel era tentador, uma magia que atiçava Harmonia. Ela tentou se pôr de pé novamente, mas era incapaz disso. No máximo, ficar sentada com as pernas paralelas ao chão, aguentando o peso dos equipamento em suas costas. A mobilidade fora do ideal do traje também não ajudava em nada.

— Ha-ha-ha-hahahaha…

Soltou um gargalhada abafada ao perceber o tamanho do desafio. Uma risada liberando um pouco a pressão da situação crítica que estava. Harmonia se sentia com raiva de si mesma por tamanha burrice.

— Eu mereci, não é mesmo, Harmonia? Achou mesmo que este planeta ignoraria sua arrogância?

Em um misto de sorriso e lágrimas que molhavam as bochechas, a garota deitou no chão e virou de bruços. O braço esquerdo em formato de L se arrastava no solo férrico enquanto o direito dava braçadas lentas para puxar o resto do corpo. Suas pernas estavam fracas e quase não conseguia movimentá-las direito, mas ainda assim foram capazes de dar pequenos impulso.

— Um caracol, dois caracóis, o terceiro não irá chegar a tempo. Entre em sua concha ou vai voar com o vento.

Cantou baixinho ao lembrar da música que seus pais cantavam para ela dormir quando criança, mas logo parou ao perceber que seu fôlego diminuía e o consumo de oxigênio aumentava. Era extremamente importante manter a frequência respiratória baixa.

Dentro do capacete, inclinou a cabeça para tomar um gole de água de um pequeno tubo na altura da boca. Felizmente, o mecanismo de hidratação ainda funcionava e ela percebeu que ainda tinha 3 litros de água no compartimento. 3 quilos. Não havia maneira de remover o compartimento para aliviar o peso, então tomou bastante água, pois seria mais fácil levar no estômago do que nas costas. Sentiu o líquido descer pela garganta como se fosse a bebida mais gostosa que havia tomado por todo sua vida. Era refrescante, leve e até levemente adocicada. Nem parecia que era água reciclada de urina. Muito melhor que as bebidas isotônicas que vinha nas missões não tripuladas.

A cada gole se arrastava alguns centímetros. Tinha que manter o ritmo, pensou. Sua improvável sobrevivência dependia de poder chamar por socorro. Que eles pensassem em um jeito de resgatá-la antes de terminar seu oxigênio. Pelo menos, se fosse morrer, que fosse sob a luz do sol, e não imersa na escuridão de uma fenda geológica.

Seu estômago já estava inflado com tanta água que se sentia pesada. Se estivesse com algum órgão rompido seria tarde demais, com água ou sem água, mas o desconforto atrapalhava sua movimentação. Sentiu ânsia de vômito, fazendo com que parasse seu lento rastejo por um ou dois minutos até que pudesse se acalmar e se controlar. Percebeu que suas faculdade smentais não estava das melhores, fazendo decisões não muito racionais, mas logo culpou o estresse e o desespero da situação por isso. Parecia que a saída da fenda não tinha se aproximado nada, mesmo que percebesse o rover já a vários metros de distância atrás de si. A garota voltou os olhos para frente no seu objetivo, e voltou a rastejar.

— Não pare, não… pare…, não pare…, não… pare…

Dizia a si mesma, ao voltar a sentir a peculiar dor na região da bacia com mais intensidade. O esforço físico estava acentuando ferimentos que ela não percebera antes.

— Não morra aqui, não… morra aqui…

Ainda que conseguisse chegar à luz do sol, ela sabia que sairia dentro da cratera, bem abaixo do terreno ao redor. Mesmo que conseguisse se comunicar com a base, as 4 horas restantes era uma previsão bem pessimista.

Harmonia mais uma vez pensou nisso e seu coração disparou. A angústia de morrer, sozinha, sem ter realizado seu maior sonho, tomava conta do que restava de seus pensamentos.



***



Alexander somente escutava sua própria respiração dentro do capacete. Os passos eram lentos em pequenos saltos na baixa gravidade e o terreno recoberto de rochas necessitavam de atenção dos colonizadores para não tropeçarem e provocarem um outro acidente. Além da comunicação essencial para a missão de resgate e salvamento, poucas palavras tinham sido até então trocadas entre os quatro, num misto de incerteza, angústia e desconforto. Desconforto porque Alex e Luana ainda evitavam um ao outro, ainda que ambos estivessem suas mentes focadas em salvar Harmonia.

O sol iria se pôr daqui a 6 horas e 40 minutos. Já prevendo que voltariam depois do anoitecer, trouxeram baterias extras para se manterem aquecidos durante a congelante noite marciana. Em pouqíssimas situações era aprovado atividades externas durante a noite devido ao perigo de hipotermina e mal-funcionamento dos trajes. Entretanto, este era o risco que decidiram correr. Para salvar a primeira pessoa nascida em Marte.

Lucciano quebrou o silêncio ao dizer pelo rádio:

— Harmonia levou 16 horas de oxigênio, sendo que já se passou 2 horas. Temos que manter o ritmo constante, pois nossa missão é prevista durar entre 10 e 14 horas.

Percebendo que Alex nem Luana se mantiveram em silêncio, Ye então respondeu:

— Copiado.

— Aamir, alguma informação nova? — Ye perguntou virando a cabeça para trás o observando a base se tornando cada vez menor.

Aamir não respondeu. Ye estranho e chamou de novo no rádio.

— Aamir, escuta?

Novamente, silêncio. Lucciano, que estava ao seu lado, virou para ela com desconforto no rosto. Parecia que estava dando tudo errado naquele dia.

— Aamir, é o Lucciano, responda.

Após um longo silêncio de vários segundos, a voz do homem surgiu no rádio.

— Trago notícias, repito, trago noticías. O orbiter tirou uma sequência de fotos sobre Ignus Borealis, e o que ele mostrou não é muito otimista.

— Diga logo! — Alex interviu na comunicação, dizendo com bastante ênfase.

— Sim, Alex, a foto mostra um rastro duplo à sudoeste da cratera terminando em uma fenda rochosa. Não há dúvidas que são marcas das rodas do Red Beetle, isto tenho certeza!

— Que fenda é essa, Aamir!? — Luana perguntou com desespero na voz.

— Uma fissura geológica, tem uns 800 metros de comprimento por… hmmm… 4 metros de largura? A profundidade varia entre 3 a 9 metros, fica a sudoeste… hmmm… de Ignus Borealis, a fenda corre de noroeste a sudeste. O interior está escuro, não consigo ver nada, vou tentar uma correção de contraste.

— Por favor, Aamir, por favor!

O homem copiou as fotos para um editor de imagens e ficou ajustando as opções de cor e contraste para tentar enxergar alguma coisa, apesar da boa resolução do satélite. Em um dos ajustes, percebeu que uma forma aproximadamente retangular cinza bem escuro se destacava no fundo da fenda. O rastros de rodas no solo. O formato diferenciado. Aamir não tinha mais dúvidas: Harmonia tinha sofrido um acidente.

— Desculpe lhe informarem, suspeito de que Harmonia esteja no fundo da fenda. O Red Beetle parece estar lá dentro.

— Tem certeza no que está dizendo, Aamir? — Lucciano perguntou de forma incisiva.

Aamir olhou novamente para as imagens. Pensou um pouco. Aproximou os olhos da tela. E respondeu:

— Tenho sim, Lucciano. Harmonia sofreu um acidente. Não consigo exergar ela, entretanto.

Automaticamente os passos de Alexander e Luana se aceleraram, os saltos ficaram mais altos e rápidos. Os instintos materno e paterno haviam finalmente tomado conta da parte mental e física de seus corpos. Não tinham tempo para pensar. Como se se mexessem sozinhos, os dois começaram a se separar de Ye e Lucciano, deixando-os para trás, que mesmo tentando alcançar os apressados à frente logo não tinham a mesma adrenalina ou vigor físico. Claro que também não iriam reduzirem a velocidade dos seus passos, mas era impossível acompanhar os pais da garota. Preferiram manter um ritmo mais lento porém constante pois sabiam que se gastassem toda energia agora talvez não conseguissem voltar a tempo antes de todo ar terminar enquanto carregassem uma Harmonia talvez inconsciente.



***



De alguma forma Harmonia se pôs em pé, se apoiando no veículo tombado. Talvez a adrenalina tivesse se exaurido, então sentia uma dor terrível no braço completamente quebrado. A parte anterior do antebraço balançava ao menor tremor, fazendo com que a garote sentisse espetadas agudas em algum lugar dentro do membro. Os dentes cerravam a cada agulhada soltando um grunhido de dor por trás deles. As pernas estavam pesadas como chumbo e o traje espacial restringia movimentos mais amplos. Pensou que ia não se manter de pé quando começou vagarosamente a se afastar do veículo, mas inesperadamente conseguiu manter o equilíbrio, cambaleante. Toda hora, Harmonia tinha que manter a respiração controlada de forma consciente, para não aumentar o consumo de oxigênio. Lentamente, um passo de cada vez, se apoiando na parede porosa, ia caminhando por entre os paredões em direção a entrada da fenda, que não parecia ter fim.

— Não pare, não… pare…, não pare…, não… pare…

Dizia a si mesma, já que a cada pisada ela se recurvava sobre o abdômen ao sentir dor na região da bacia.

— Não morra aqui, não… morra aqui…

Respiração a respiração. Mantendo o máximo de calma que era possível. Harmonia cada vez mais se aproximava da saída da fenda, que dava direto para dentro da cratera. Os paredões aos poucos reduziam-se de altura, até que abruptamente um forte feixe de luz iluminou o interior do seu capacete.

Era o sol, que embora estivesse detrás de um fina camada de poeira, parecia mil vezes mais brilhante enquanto suas pupilas se ajustavam ao novo ambiente.

— Hahahaha. Hahahaha…

A garota gargalhou quando a luz aqueceu seu rosto. Parecia que tinha recebido uma injeção de energia. Avançou mais alguns metros pelo terreno coberto de pequenas rochas e olhou ao redor. À sua frente, o grande fundo da enorme cratera de 300 metros de diâmetro, um íngreme declive levando ao centro da formação geológica. Atrás de si, a fenda, e ao lado dela, uma difícil subida recoberta de pedregulhos levando à borda irregular da cratera. Andou em direção à subida, caminhando diagonalmente ao terreno enquanto se equilabrava instavelmente em suas pernas. O arrastar de suas pernas formava um rastro contínuo visível na terra. De vez em quando caía no chão, gritando de dor, mas se levantando em seguida e prosseguindo em frente. Na eternidade que se seguiu, gruinhindo de dor mas mantendo a obstinação, Harmonia finalmente havia chegado à borda da cratera. Seu traje que era branco já estava totalmente da cor de Marte. Um degrau separava o morro onde estava e o terreno mais alto e plano, então teve que jogar seu corpo sobre o degrau, se impulsionando com as pernas e usando seu braço direito para se apoiar no chão. Com alguma dificuldade, estava de bruços fora daquele grande buraco.

— Haha, eu consegui, maldito planeta!

Conseguiu se levantar. Estava ficando realmente acostumada em se pôr de pé usando o mínimo de forças. Andou paralela a profunda fenda até encontrar o morro que levou ao acidente e observou as marcas que o rover tinha deixado desde suaspartida da base. Aquele seria seu caminho de volta para casa. Se tivesse tempo.

De repente, alguém chamava no rádio.

— Harmonia, responda, é a colônia chamando — a voz de Aamir misturada ao leve ruído estático tinha tons de preocupação.

— É a Harmonia.

— Graças… Harmonia, qual sua situação? Perdemos a localização e telemetria do Red Beetle.

A garota ironicamente riu mais uma vez. Sim, está muito bem, olha só, estou viva, e estão preocupados comigo, que bonitinhos, pensou em dizer mexendo a boca sem som. Então respondeu:

— A situação? Como posso dizer, a situação está… fora do recomendado. Ai! — soltou um grito de dor enquanto andava. — Tenho 4 horas e 12 minutos de ar e o Red Beetle jaz em paz no fundo do desfiladeiro.

Do outro lado do rádio, Aamir arregalou os olhos duvidando do que tinha ouvido.

— Harmonia, você tem 4 horas e 12 minutos de ar e o Red Beetle… jaz? Pode repetir?

— Isso mesmo. É você Aamir? Sim, o Red Beetle descansa em paz. Posso dizer que tive um pequeno acidente. Meu visor está rachado e meu braço está quebrado, tirando os ferimentos internos, mas estou muito bem sim, estou ótima.

Aamir não sabia se o que mais lhe deixava estupefato era a situação que a garota estava ou o tom sacárstico que ela dizia. Isso atrapalhava sua análise da condição de saúde de Harmonia.

— Harmonia, você declara emergência médica? — declarar emergência médica tinha um significado bem específico na missão para Marte.

A garota ficou em silêncio, pensando no que tinha acabado de acontecer. Suspirou e então disse:

— Sim, declaro emergência médica. Preciso de atenção imediata.

Assim que terminou a frase sobre sua situação a ficha caiu. A risada irônica de antes agora dava lugar aos olhos marejados e ao choro audível pelo microfone do traje. Harmonia sentia medo, muito medo de morrer, mas odiava expor isso para fora, mesmo para si mesma. Pior, medo de morrer antes de conseguir visitar a Terra que tanto sonhou. Sua vida inteira poderia ser resumida para este único objetivo.

— Aamir… por favor, venham me resgatar… — sua voz se intercalava com a respiração ofegante de choro. — Estou na… cratera Ignus. Me salve por favor…

— Vai dar certo, Harmonia. Eu já sei onde está, tenho você no satélite. Seus pais já estão a caminho.

— Como eles estão… a caminho? — deu uma profunda inspirada. — Eles… estão a… pé?

Aamir respondeu após alguns momentos de silêncio:

— Estão. Com Ye e Lucciano.

— Bando de… desajustados… Qual-qual o ETA? — Harmonia tentava formar frase inteiras entre soluços e lágrima.

O homem do outro lado fechou os olhos e balançou a cabeça sutilmente em pessimismo. Sentiu um aperto no coração, sua garganta se fechou. Odiava ser a pessoa que dava as más notícias, como uma ceifador trazendo a foice. Os demais na sala também escutavam a conversa e compartilhavam deste terrível sentimento, sabendo que ela não teria muitas chances de voltar viva.

— 6 a 7 horas. Me desculpe, Harmonia. Me desculpe.

Solenemente, Aamir respondeu. Que terrível, que tragédia. A primeira pessoa nascida em Marte iria morrer solitariamente no grande planeta vermelho.

— Obrigado… Aamir. Eu vou chamar… meus pais.

Suportando a dor, levantou o antebraço para chegar ao visor e selecionou uma outra frequência no rádio e chamou ao microfone:

— Mãe, pai?

— Harmonia! — a voz dupla sobreposta foi ouvida pela garota. Eram vozes intensas, de alegria, de reencontro. Os dois já estavam cansados de darem grandos saltos pela superfície de Marte agora estavam estáticos, completamente atentos ao que se passava do rádio.

— Me desculpe, me desculpe! — as lágrimas não paravam de extravazar dos olhos da garota. — Me… desculpe, desculpe…, desculpe… — Eu.. acabei fazendo uma coisa horrível… A culpa foi totalmente minha…

— Harmonia, não diga isso! Fui eu! Fui eu! — Alexander respondeu.

— Não minha filha, nós que erramos… destruímos seus sonhos… Nos perdoe, por favor… — Luana disse logo em seguida, também em prantos.

— Eu não tenho ar suficiente… não tenho… isso vai ser um adeus. Me desculpe, me desculpe… — as fungadas, o choro, a dor, a solidão, a paisagem, tudo se misturava e permeava enquando Harmonia conversava com seus pais. Os três sabiam que não haveria mais tempo. Estava bem cientes. Mas não iam desistir.

— Estamos indo, filha, estamos a caminho. Vamos te encontrar — Alexander pareceu dar saltos e passos mais longos. Luana não ficou para atrás e continuou a acompanhar o homem.

— Consegue nos encontrar, filha? Estamos seguindo… as marcas do Red Beetle… Se estiver em condições venha em nossa direção, por favor… Vamos… nos encontrar… vai dar certo…

— Desculpe, pai, mãe… eu não consigo andar direito… Estou me esforçando, mas não con…sigo. Me dói tudo, me dói tudo — a respiração ofegante transpirava pela transmissão.

— Não desista, minha filha… vamos chegar, tudo vai dar certo.

— Não vou desistir, mãe… não vou. Me desculpa por isso… eu fiz uma filha muito egoísta, peço desculpas…

Harmonia acelerou o passo. Se conseguisse encontrá-los a meio caminho ainda teria uma chance. Tinha certeza que carregavam oxigênio extra. Não poderia desistir, não queria desistir, não pensava em desistir.

Desabou. Alexander ouviu o barulho no rádio:

— O que aconteceu, Harmonia?

— Não consigo mais… andar. Está doendo muito… Desculpe meu pai, minha mãe. Peço que… o que quer que aconteça… sejam felizes… Amo vocês.

— Harmonia! — os dois gritaram seu nome pelo rádio ao mesmo tempo. A garota sentia uma terrível dor na região da cintura. Dor no peito. Dor no braço. Sua força se exauriu completamente. Estava de bruços, com o rosto virado em direção ao sol, observando aquela infinita paisagem avermelhada recoberta de pedregulhos. Era uma bela paisagem para se ver antes de morrer. Harmonia seria também a primeira a ter esse terrível privilégio, em toda a história humana, pensou. Nada mal.

A insuportável dor recobriu cada canto de seu corpo. As vozes de seus pais no rádio se tornavam ruídos de estática cada vez mas distantes, meros sons indistintos de fundo parecendo ruído branco. Odiava, odiava profundamente que sua vida terminasse de forma tão humilhante, caída no solo férrico do planeta vermelho. Pelo menos seus momentos finais não se passariam dentro dos 12 módulos da colônia-prisão. Olhando em direção ao sol que aos poucos descia no horizonte, o calor de sua luz absorvido em seu rosto apaziguava um pedaço da agonia que sentia. Ainda que não acreditasse em algum ser superior, fechou as pálpebras e relembrou que em algumas culturas terrestres as pessoas acreditavam que a morte era apenas parte de um grande e eterno ciclo.

Assim, seus lábios suavamente entoaram um breve mantra que tinha lido, desejando que finalmente pudesse renascer como uma terráquea em sua próxima vida.







Parte 1
Parte 3