Um som reverberava continuamente pelos corredores dos módulos da colônia, ecoando de forma consistente uma melodia alegre, inocente, com fôlego. Este som — um longo conhecido dos poucos habitantes daquele assentamento humano — trazia conforto e alívio até mesmo para os mais insensatos da humanidade. A origem do barulho não era uma máquina ou uma intempérie, muito menos da natureza — embora alguns digam que seria um som natural, a depender da interpretação do observador —. Este barulho envolvente partia de uma garota que se contorcia de gargalhar, repousando a mão sobre a barriga e se curvando de não conseguir se controlar. Seus cabelos negros caíam sobre os ombros protegidos por um tecido espacial, seus olhos verdes debaixo das pálpebras fechadas e lacrimejadas de tanto rir se espremiam em sua face simétrica, a luz branca espectralmente ajustada do cubículo dormitório brilhava em sua pele de tons morenos, enquanto a garota se debruçava em sua cama incapaz de segurar a gargalhada involuntária enquanto imaginava em sua cabeça as cenas que seus pais lhe contavam enquanto sentados na cama do lado oposto do quarto. Uma pequena janela circular na parede adjacente pintava o ambiente com a paisagem avermelhada da interminável planície de Arcadia Planitia. O ar descontraído da conversa era algo que Luana e Alexander conseguiam transmitir muito bem a sua filha.
— Seu pai estava tão nervoso que ele respondia a sério quando faziam piadas de duplo sentido, todo mundo começava a rir e ele não entendia. Imagine, todo mundo da base ao redor de nós dois, e gravando ainda por cima para enviarem à Terra.
— Lógico, eu nunca fui bom publicamente. Tive que fazer papel de palhaço basicamente.
— E então, uns dias depois, já não bastasse a gozação aqui dentro, o centro de comando perguntou se a gente poderia fazer uma entrevista pública, eu logo aceitei porque sou dada mesmo, mas seu pai enrolou e enrolou até o último minuto.
— Foi um inferno aqueles dias. Sempre fiquei de canto nas aparições públicas e aí esta tonta diz que sim e insistiu, ô se insistiu, para que eu aceitasse também.
— Lógico amor, foi um marco da história da humanidade, quase o nascimento de Jesus — Luana se virou para Alexander pegando em sua mão.
— Só que a Maria não era virgem — respondeu sem segurar a própria risada.
Harmonia se regojizava intensamente com mais uma das histórias divertidas e infames de seus pais. Dado o contexto, era óbvio que eles estavam nos holofotes de um evento histórico, que basicamente impactava toda a história da humanidade até seu fim. Pela primeira vez uma pessoa nascia fora da Terra, e acontecera antes mesmo do primeiro humano nascido nas bases lunares, que todos achavam que seria o mais provável. O nervosismo de Alexander assim que descobriu a gravidez de Luana não era injustificado, entretanto. Um nascimento já era algo que trazia riscos aumentados tanto para a mãe quanto para o bebê mesmo na Terra, onde uma boa parte das pessoas teria acesso ao que há de mais avançado nas ciências médicas. Mas uma gravidez e parto em um ambiente hostil, de baixa gravidade, sujeito a radiação cósmica, a vinte minutos-luz do hospital completamente equipado mais próximo era algo assustador. De qualquer forma, os dois nunca esconderam que foi um misto de irresponsabilidade com desejo de aventura e uma pitada de curiosidade “científica”, ainda mais que sendo óbvio que humanos são humanos e fazem coisas de humanos, já que o suprimento de dispositivos anticoncepcionais na colônia era farto. Era um risco desnecessário que poderia levar a morte de Luana e Harmonia. Mas depois de uma longa conversa entre todos da equipe e médicos em Terra, ambos decidiram levariam em frente a gravidez.
E então, em 19 de junho de 2046, às 23:55 UTC, horário da Terra, 9 meses e 10 dias depois da concepção, depois de um intenso, difícil e extremamente arriscado trabalho de parto, Harmonia nascia na unidade hospitalar 1 da colônia A Small Step em Arcadia Planitia, próximo ao polo norte do planeta vermelho. Luana teve sangramento excessivo e quase morreu de hemorragia. O bebê tinha nascido com 62 centímetros e 4,0 quilos, o que era obviamente muito acima da média para um menina, mas não era uma surpresa, o que complicou ainda mais o procedimento. Harmonia foi logo colocada numa unidade adaptada de UTI neonatal — adaptada porque não tinham uma unidade para recém-nascidos, tendo sido remodelada o equipamento para adultos com bastante fita adesiva e materiais plásticos impressos em 3D —. Cinco astronautas da base que tinham o sangue B ou O, mais Alexander que era O-, fizeram transfusão para tentar recuperar Luana da intensa hemorragia. Devido a sua criticidade, alguns diriam que ainda houve um toque divino que fez com que a mãe se recuperasse da situação que muitos médicos da Terra jurariam que seria tarde demais. Mas não foi. Dias depois ela foi despachada do leito da unidade e pôde ficar lado a lado da pequena criança que observava pelo acrílico transparente da unidade de UTI.
Surpreendentemente, 30 dias terrestres depois, por decisão da junta dos médicos da colônia mais os da Terra, Harmonia poderia ser retirada da unidade e finalmente respirar o ar comum da base. Luana pegou pela primeira vez sua filha no colo, enquanto Alexander brincava com seus minúsculos dedos. A bebê dormia profundamente, respirando calmamente, e Hamilton, um dos engenheiros da missão, pediu para que os dois posassem para a câmera.
— Esta será a foto oficial deste nascimento. Vai aparecer no mundo todo! Então façam as melhores caras que já fizeram em suas vidas — disse enquanto posicionava o tablet enquadrando os três diante de um painel de equipamentos —. Três, dois, um…
Click. Apesar dos diversos vídeos já publicamente revelados e outras fotos da gravidez, esta foto sem flash seria a mais oficial, em poucas horas apareceria nas capas dos principais jornais, nos outdoors eletrônicos, nas redes sociais, nos aplicativos de realidade virtual e a que ficaria exposta com destaque nos museus e murais das agências espaciais na Terra, na Lua e em Marte, e onde quer que fosse a próxima missão.
Não que Harmonia não soubesse de toda a história que envolvesse ela. Era impossível não saber, assim que acessasse o repositório da interplanet — a internet interplenatária —, e claro, de todas as vezes que contavam alguns casos ou outros daquela época. Mas eram tantas coisas que tinham acontecido, era uma situação tão especial e única que parecia que seus pais tivessem um infinito estoque de contos, causos e situações que sempre se descobria algo novo. E conforme ela crescia, eles também ficavam mais a vontade para contar as piadas sujas que enfrentavam dos seus colegas — ou melhor, amigos — que conviviam na base marciana.
Estas deliciosas tardes de conversa não era a única coisa que Harmonia fazia na base. A colônia era relativamente extensa, contendo 12 módulos em formato semiesférico, de aproximadamente 400 metros quadrados cada, interligados por corredores estreitos sem janelas com 2 deles reservados para plantações de alimentos. Batatas, cenouras, beterrabas, alfaces, repolhos, nabos, e até um pequeno pé de abóbora. Eram os únicos módulos que realmente tinham grandes aberturas para a entrada da luz solar (bem mais fraca que na Terra) dando um aspecto de estufa avermelhada, mas a maior parte da luz era provida artificialmente. Os vegetais eram plantados em uma espécie de fazenda vertical como se fosse uma pilha de prateleiras, e cada andar mantendo um tipo diferente de solo de acordo com que era melhor para cada tipo de planta. Havia solo terrestre e marciano, misturados em proporções distintas também de acordo com o tipo de vegetal. Tudo isso para usarem o mínimo de energia possível e de espaço. E com dezenas de minifazendas, era necessário pessoas que pudessem cuidar delas, afinal, a sobrevivência delas dependia disso. Os 41 membros da colônia, inclusive Harmonia, se revezavam nas tarefas que incluíam repor os minerais do solo, ajustar a iluminação, controlar a irrigação e temperatura, entre outras coisas. Os demais módulos tinha diferentes funções: dormitório e espaço social, telecomunicações, laboratório de pesquisas, centro médico, um mini datacenter, câmara de recompressão, entre outros de uso mais misto. Claro que não tinha chegado em Marte tudo de uma vez, mas uma simbiose entre robôs construtores e humanos foi essencial para construir este particular habitat.
E com toda esta extensão, não faltava trabalho para Harmonia. Desde cedo seus pais educaram ela para aprender tudo que pudesse sobre a colônia, desde ler manuais de operação a reparos complexos. Harmonia era conhecida por saber de cabeça onde ficava e como operava cada complexo sistema da base ao ponto em que os especialistas pediam a sua ajuda, em vez de o contrário.
— Tá vendo aqui? — Harmonia apontava para um disjuntor queimado atrás de um painel parafusável, enquanto John Kerbal, um engenheiro elétrico observava atentamente o objeto — A linha B desligou por um bug no distribuidor eletrônico, o painel da iluminação não recebeu a informação e em vez de dividir pro AUX B e linha C puxou da C uns 400 ampères. Aí não há muito como aguentar. Quando que vão liberar o update do firmware?
John observava o complicado diagrama elétrico no tablet com inúmeras linhas indicando as ligações elétricas e símbolos para todo o lado. Mais complexo que uma teia de aranha.
— Minha filha, como soube disso tão rápido? — John perguntou impressionado.
— Enquanto você dormia eu estava estudando isso daí — disse jocosamente piscando o olho direito.
— Finalmente vou poder me aposentar e ter uma casinha aos pés do Monte Elysium — devolveu na esportiva.
Com 14 anos, numa outra situação enquanto alguns discutiam em uma sala quem iriam para uma atividade externa, Harmonia tomou a dianteira e propôs se voluntariar para consertar uma antena de comunicação, que tinha sido danificada quando pedras de um tornado a atingiram. Se fosse aceita, seria sua primeira vez fora da base.
— Não posso deixar. Você é muito nova e a radiação lá fora pode te deixar infértil — disse seu pai, extremamente preocupado.
— Olha meu tamanho. Eu já tenho outros problemas a me preocupar, mais um ou outro não faz diferença — e apontou para si. Com esta idade ela já media 1,70 metro. Há uma tendência de corpos que se desenvolvem em baixa gravidade sejam maiores, mas não se podia descartar alguma alteração genética também. — E você e Mamá já fizeram isso também e eu nasci, então…
— Mas você não é nós! Que não seja só isso, sendo muito nova pode ter risco de câncer precoce também.
— Já é um milagre eu ter nascido. Isto é minha vida! Eu sou marciana e este ambiente é meu! Eu quero ir, eu preciso aprender a fazer tudo aqui — sua insistência era invejável.
Luana mantinha-se calada, mas no fundo ela tendia a concordar com a filha. Conhecendo Harmonia, sabia que ela queria não desafiar apenas a hostilidade a superfície de Marte, mas a si mesma. Ela queria demonstrar ser capaz de tudo e mais um pouco. Dá para dizer que este trato de orgulho foi muito bem puxado de sua mãe.
— Realmente, não posso permitir. Como chefe da missão esta responsabilidade é minha também — Lucciano Georgiano era atualmente o responsável pela colônia. A cada ano marciano eles votavam quem seria o novo chefe da base. — Pela sua segurança não posso permitir, e argumentando com um pouco de egoísmo também, posso ser punido se algo acontecer a você.
Harmonia franziu a testa e sem rodeios rebateu o argumento:
— O que? Acha que vai vir a Patrulha Estelar te prender aqui?
— Filha, olha a boca! — seu pai a repreendeu.
— Todo mundo aqui arriscou a própria vida pra vir aqui e 3 já morreram. Por que comigo é diferente então?
— Você não é adulta ainda — Lucciano respondeu tremendo os punhos. Dava para perceber visivelmente que estava nervoso.
— E talvez nunca vou ser. Meu coração é inchado, minha altura exacerbada, sei que vou ter câncer aos 30 e meus ossos são quase de vidro. Se eu não viver o quanto eu conseguir agora, eu nunca vou conseguir!
Um silêncio pesado ecoou pela sala ocupada por umas dez pessoas. A diferença de visão entre Harmonia e os demais era contrastante mas ao mesmo tempo óbvia. De certa forma, os demais ainda estavam vivendo a filosofia da Terra de segurança antes de tudo, ainda que tivessem arriscado serem os pioneiros viajando com alta probabilidade de terem embarcados só com passagem de ida para o planeta vermelho. E todos eles tinham pelo menos 23 anos de idade quando os foguetes decolaram da Terra, e agora alguns já passavam dos 50, uma proeza por si só por conseguirem viver tanto tempo em um espaço confinado em ambiente hostil (eles tinham acompanhamento psicológico constante, mas não eram raros os casos de breakdown mental e acessos de loucura, devidamente suprimidos com medicamentos trazidos da Terra). Mas uma vez assentados e entendendo o perigo do ambiente, se acostumaram com um modo de vida relativamente seguro, até mesmo desinteressante. Qualquer perda humana, na grande escala das coisas, seria um atraso para a melhoria da colônia para trazer mais humanos da Terra. Mas Harmonia sabia com grande clareza as consequências de ter sido gestada em outro planeta e a qualquer momento seu corpo programado por DNA adaptado para andar em gravidade 9,8 metros por segundo ao qudrado, sob 100 quilopascais de pressão em uma atmosfera eficiente em proteger da radiação cósmica, poderia sucumbir. Para os terráqueos Marte era um destino, para ela era a viagem. E queria aproveitar o máximo.
Depois de um longuíssimo momento mudo, o chefe da base respondeu a contragosto.
— Vou pensar.
Alexander, assistindo a discussão, era incapaz de balbuciar alguma palavra.
***
— Bruxa Marciana, verifique a conexão da antena — Harmonia escutou um som ruidoso dentro de seu capacete.
— Hahaha, por que me chama de bruxa assim do nada?
— Você conserta tudo que tá quebrado, cuida da fazenda, reprograma os computadores, conhece cada palmo da colônia. Certeza que usa algum feitiço pra saber isso tudo — Marie, a responsável pelos sistemas de comunicações, respondeu pelo microfone com um sorriso no rosto. Ela assistia tudo por uma tela alimentada por imagens de uma câmera no capacete de Harmonia.
Era quase meio-dia marciano, o sol era uma pequena bola esbranquiçada quase no topo do céu por trás de uma fina camada avermelhada de poeira. As botas do traje específico para missões externas deixavam pegadas no solo vermelho. A temperatura era de agradáveis -22°C, com quase nenhuma vento (a atmosfera de Marte é bem rarefeita, mas de vez em quando aparece alguns tornados). A garota estava terminando os reparos de uma antena parabólica de 2 metros de diâmetro e havia reconectado o cabo coaxial no aparelho, mas provavelmente havia algum problema já que Marie só conseguia detectar ruído em sua tela.
— Nada, nada?
— Nadinha. Menos 60 — a engenharia respondeu.
Harmonia mexia e remexia nos cabos, reposicionava manualmente a antena, pegou uma espécie de espanador para tirar a poeira do refletor, mas apenas ruído e nenhum sinal da sonda era recebido. A garota então pairou os olhos no horizonte, observando a planície infinita, as rochas escuras, o vazio de Arcadia Planitia. Deixou que a paisagem a consumisse por vários segundos, o feitiço vermelho se virando contra a feiticeira. Então, fechou os olhos e imaginou as conexões, os circuitos, o firmware, os algoritmos de processamento de sinais, montando um quebra-cabeça visual em sua mente. Revia mentalmente os diagramas que havia lido nos manuais. E então, a resposta veio:
— O conector no painel de entrada. Vou usar minha delicadeza — como num filme de cowboy, sacou um martelo especial da cinta de ferramentas e grosseiramente foi batendo no conector metálico que estava torto mais de 45 graus para baixo até que ele começasse a se endireitar. A peça era feita de material resistente e não se ajeitava fácil.
— E agora, Marie?
— Wow, menos 40. Vai indo. Apareceu um pico para mim. Continua. Menos 20. Quase lá. Pronto, está estável. Pode parar para não estragar de novo.
— Não parece muito que o vento tenha sido capaz disso, acho que já tava torto antes e o tornado só ajudou a terminar. Enfim, vou voltar para a base porque não quero mais raios gama nas minhas células — encerrou Harmonia, finalizando o serviço e recolhendo os materiais.
A garota voltou para dentro da base, adentrando primeiro a câmara de descompressão. A escotilha se fechou e selou o pequeno ambiente que aos poucos tinha sua pressão ambiental elevada até 0,71 atmosfera, similar a pressão de cabine dos antigos aviões comerciais. Harmonia ajustou as válvulas de seu traje para que a pressão interna se igualasse a da câmara e finalmente retirou o seu capacete, já com o visor um pouco embaçado do seu suor evaporado e as luvas espessas também úmidas. O esforço físico para manusear qualquer coisa usando aquele traje não era desprezível mesmo em baixa gravidade, exigindo condicionamento e músculos fortes. Que também exigia uma boa e saudável musculatura cardíaca. Que era algo que Harmonia sabia que não tinha em perfeitas condições e por isso constantemente fazia eletrocardiograma e outros exames para que não deixassem ela se esforçar além dos limites. E era exatamente por isso que enquanto esperava a escotilha de saída abrir, Harmonia percebeu que seus olhos marejavam sempre que pensava nisso.
— Nunca vou conseguir, né? — falou baixinho, para si mesma, sentindo o nó na garganta de angústia, recobrando a consciência da maldição de ter nascido no planeta vermelho.
***
A sua característica e gostosa gargalhada novamente reverberava pelos módulos da base marciana. Harmonia cuidava da plantação de tomates, semeando os andares da fazenda vertical com delicadeza enquanto conversava com sua mãe que lhe ajudava e atrapalhava ao mesmo tempo, contando histórias cômicas. Os dedos cavavam a terra escura e fofa e cuidadosamente dispersavam as sementes a intervalos regulares sob a intensa luz artificial, tapando os buracos logo em seguida. Tanto ela quanto Luana usavam óculos escuros para protegerem os olhos, já que trabalhavam o dia inteiro próximas de fontes de luz intensas.
— O louco do Miyamoto conseguiu caçar umas peças quebradas e fez uma aranha, assim, desse tamanho. De longe parecia que era de verdade. Então, lógico, ele resolveu que seria engraçado pregar uma peça, claro.
— Dele já esperava mesmo.
— Sim — e riu. — Então, o Miyamoto amarrou um fio bem fino na aranha e escondeu ela atrás do vaso e só ficou de moita esperando alguém entrar.
— Que horror!
— O Joseph então entrou e fechou a porta. Mas tinha uma fresta infíma, o Miyamoto, claro, chamou todo mundo para ver, então só puxou o fio assim, de uma vez. O Joseph deu um grito estridente e só saiu com as calças arriadas, na frente de todo mundo, desesperado, sem entender o que estava acontecendo. Só quando viu o Miyamoto segurando o fio que entendeu, hahaha. Estava todo mundo rindo, coitado dele. Ele tava com raiva e vergonha ao mesmo tempo, voltou e pegou a aranha e espedaçou ela no chão. Depois, voltou pro banheiro e fechou a porta.
— Como assim, mãe, que situação horrível! Se fosse comigo teria arrebentado o Miyamoto!
— Depois eles brigaram, ele tomou advertência pela brincadeira, mas que foi extremamente engraçado foi, nunca vi tanta gente rolando de rir ao mesmo tempo.
Entre conversas e risos, as duas já tinham completado um lote inteiro da plantação e estavam cansadas. Muito tempo agachadas esticando os braços entre os andares estreitos. Neste momento, ouviram alguém chegar correndo pelo corredor. Era Alexander, entusiasmado:
— Tenho um anúncio importante! Finalmente decidiram a data da nova missão. Teremos 40 novos habitantes em 430 sols!
Luana abriu um extenso sorriso, os olhos de Harmonia se arregalaram. Já fazia um longo tempo que alguma missão tripulada tinha chegado a Marte, somente as não-tripuladas vinham com certa frequência. E de quebra, a população da colônia dobraria, significando que estavam trazendo também novos módulos, mais materiais, uma imensa quantidade comida e mais fazendas verticais. A cadência das missões era mais uma consequência de política do que de impedimento técnico. Nações tinham que se conversar, empresas concorrentes tinham que se unir, a opinião pública teria que colaborar, e dinheiro teria que fluir. E claro, uma missão a Marte era muito mais arriscada do que à Lua, onde a colônia já beirava os mil habitantes (e já tinham 5 selenitas, e outros 3 estavam por vir. Obviamente. Humanos fazem coisas de humanos). Mas a parte que seria mais importante para Harmonia viria logo a seguir:
— E finalmente também teremos uma missão de retorno, 100 sols depois. O centro de comando está selecionando quem voltará Terra, mas estão aceitando voluntários para entrar na lista também.
Harmonia sentiu um gelo percorrer todo seu corpo. Seu sorriso de poucos momentos antes desapareceu, sua boca se abriu para tomar um gole de ar. Seu coração acelerou e seus dedos sujos de terra começaram a tremer, que ela não conseguia disfarçar. Sua mãe logicamente percebeu o nervosismo da filha e passou a mão em suas costas:
— Harmonia, o que foi?
Ela olhava para seu pai com olhos arregalados. Medo. Curiosidade. Ansiosidade. Exaltação. Sentimentos bons e ruins se misturavam enquanto ela formava uma longa e complexa cadeia de decisões em sua cabeça. E se? E se eu fosse para Terra? E se eu morresse? E se eu sobrevivesse, que consequências teria? E poderia voltar? Não poderia voltar? Viveria em uma cadeira de rodas com a gravidade da Terra? Meus músculos vão me suportar? Meu coração aguentaria bombear sangue para o cérebro? Os médicos conseguiram resolver meus problemas? E se me tratassem como objeto de estudo? Seria tratada como celebridade? Ou como ser exótico? O comando da missão me permitiria ir a Terra? E meus pais? Iriam comigo? Como eles suportariam a dor se eu morresse? E se…
E se…
E se. Sua visão girava distorcendo a paisagem metálica do módulo-fazenda, da parte superior do domo mostrando o céu avermelhado, dos lotes de plantações, da face de seu pai, Alexander, que agora mostrava seu tom de preocupação ao perceber que o corpo da filha balançava como se perdesse força nas pernas. Harmonia ainda tentou agarrar na mão de Luana, mas não conseguiu. Desabou no chão, a visão distorcida se tornava cada vez mais escura como se adentrasse em um sono induzido por anestesia.
***
O monitor médico de eletrocardiograma fazia um bipe a cada batida de seu coração. Harmonia já estava consciente, ainda deitada no leito da unidade médica, olhando para a lâmpada branca no teto. Do seu lado esquerdo, Alexander segurava sua mão, e de seu lado direito, Luana segurava sua mão. A doutora Ye estava em pé na extremidade do leito e analisava em um tablet o resultado do exame de sangue. Apenas os quatro naquela sala, o intenso silêncio parecia fazer com que os bipes fossem estridentes sinos de bronze. A médica deslizava os dedos na tela, observando com atenção cada número que aparecia no documento e as recomendações sugeridas pelo algoritmo do software médico.
Depois de longos e ansiosos minutos, Ye anunciou:
— Não tem nada de anormal no sangue para o caso de Harmonia. Houve uma leve arritmia, mas isso foi consequência do estado psicológico, e o desmaio foi provocado pela queda de pressão. Minha recomendação é apenas descansar e evitar situações de estresse. Neste caso específico, pelo que me contaram… hmm — titubeou —, meu dever é de sigilo médico, não vou me envolver. Vou dar espaço para que conversem. Com licença.
— Obrigado, Ye — Alexander agradeceu a médica, que sorriu em retribuição. Ela saiu da sala e fechou a porta.
— Harmonia… — Luana escolhia as palavras com cautela — eu… já entendi. Não precisa explicar…
A mãe sentiu uma secura na garganta. Era óbvio que eventualmente o dia chegaria, embora Luana tivesse evitado até então tocar no assunto. Mas ninguém mais compreendia Harmonia como ela, sua personalidade curiosa, temerária e até mesmo hiperativa.
— Sim, mãe. Eu sempre considerei isso, apesar dos riscos… Por isso quando escutei o pai falando que finalmente teríamos uma missão, eu não aguentei… — Harmonia falava extremamente calma e lenta, sua confusão mental atrapalhava com que falasse com velocidade normal.
— Minha filha, certeza mesmo que quer ir? — Alexander perguntou preocupado.
— Totalmente, não. Mas… é um dos meu desejos. Meu maior sonho. Quero poder andar sem o traje… respirar o ar sem ser esse reciclado, beber água direto da terra… Hoje acho que esta colônia é extremamente pequena. Não sentem isso?
Claro que eles sentiam. Eles estavam ali há vinte anos, não tendo mais espaço do que em uma dúzia de módulos e ocasionalmente tendo passeios para a superfície de Marte, mas era algo inconveniente e perigoso ter que andar de forma desengonçada com os trajes. Porém, o sentimento de pioneirismo e desbravamento, e saberem que jamais seriam esquecidos pelo resto da história da humanidade triunfava sobre todos esses percalços. Uma grande dose de arrogância e orgulho, obviamente. Harmonia já não tinha este sentimento exacerbado. Seu nascimento não foi uma escolha, foi um acaso. O orgulho de ser marciana era apenas da superfície para fora, apenas para suas argumentações combativas. No fim, ela era apenas o que ela era.
— É um legado, filha. Lógico que eu sinto saudade da Terra. Dos meus pais, dos meus tios, dos meus amigos. Não foi fácil largar tudo isso. Mas aqui me trouxe coisas boas também para compensar. Conheci sua mãe. Tivemos você. E somos sementes da humanidade interplanetária. Por causa disso…
Harmonia abruptamente interrompeu.
— Nunca quis ser parte disso, pai. Só isso. Respeito imensamente… tudo que vocês fizeram. De verdade. Deve ter sido uma escolha terrível… Mas vocês escolheram. Eu não.
Por um momento, Alexander pensou que era apenas a clássica rebeldia de adolescente, de sempre ser do contra, brigar com os pais e ter sua própria identidade. Porém, logo percebeu que quando isso acontece na Terra, os adolescentes formam grupos de interesses similares, ainda que eventualmente rebeldes ou destrutivos, e depois de alguns anos nesta fase amadurecem e voltam ao convívio familiar. Já no caso de Harmonia, não havia ninguém naquela base com os mesmos anseios, interesses e energia. Todos eles tinham a mentalidade de grandiosidade, de colonizadores, e claro eram muito mais velhos, muito longe da mente de uma adolescente. Harmonia não tinha levado uma vida normal. Era a exceção da exceção da exceção. Uma comparação razoável com uma adolescente da Terra seria impossível e pretensiosa. A garota, no fundo, estava se sentindo sufocada e sozinha.
Todos ali sabiam que se ela fosse enviada para o planeta-mãe, seria uma situação sem volta. Harmonia provavelmente não sobreviveria muito tempo na Terra. Ela viveria em uma cadeira de rodas devido ao seus ossos frágeis para a gravidade da Terra, ou seu coração faria tanto esforço que falharia. Nem todo o exercício diário que a garota praticava e que lhe dava músculos e juntas fortes poderiam compensar mais que o dobro da gravidade, de forma constante. A marciana também ficaria exposta a uma miríade de patógenos que ela nunca tinha encontrado, e portanto, teria baixíssima resistência. Uma mera gripe poderia desencadear uma infecção terrível. Provavelmente, nem com todo esforço médico do mundo poderia lhe dar uma vida próxima do normal. Tudo, mas tudo indicava que sua vida terrestre seria miserável.
Tivera ela a mesma sorte dos selenitas, que ainda crianças tão logo tivessem condições de sobreviverem às forças g de uma decolagem de espaçonave eram mandadas para a Terra para poderem se desenvolver o mais normalmente possível. Afinal, era apenas uma viagem de 3 dias, com diversos foguetes indo e voltando da Lua anualmente, um frequente MoonExpress. Com isso, os problemas que desenvolviam por nascerem em ambiente de baixíssima gravidade eram prontamente tratados, deixando poucas ou quase nenhuma sequela ao longo da vida.
Alexander se agonizava ao repassar tudo isso em sua mente. Balançou levemente a cabeça e inspirou profundamente:
— Não posso permitir. Você vai ficar aqui.
— Vai me trancar no almoxarifado? — respondeu grosseiramente.
— Não foi assim que te criamos! — o pai olhava intensamente para a filha, consumido pelo nervoso. Não é não, reafirmava.
— Vai me obrigar a ficar aqui até eu morrer?
Alexander não respondeu. Luana decidiu por adentrar no meio da confusão tentando apaziguar a discussão.
— Luana, por favor, tenha mais respeito com seu pai.
— Vocês pensaram só em vocês. Quando agora é hora de eu fazer a escolha para partir, acham que pode se intrometer. Eu quero viver, mãe, eu quero viver! — Harmonia levantou o tom de voz, o bipe do monitor cardíaco gritava mais acelerado, a garota levantou as mãos no ar e bateu com força no colchão do leito, estremecendo a estrutura metálica. — Egoístas. E-GO-ÍS-TAS!
O rosto de Alexander ficou vermelho, furioso. Parecia que alguém tinha espetado uma agulha em um balão, que explodia em um intenso baque. Ele então levantou a mão, como se fosse dar um tapa na filha, e desceu em velocidade. Em seguida, um tabefe sonoro.
— Por favor, Alex! Por favor, se acalme! — gritou.
Luana previu que a situação escalasse e colocou seu próprio braço entre a filha e Alexander, se debruçando sobre o leito. A mão de seu (não-oficialmente) marido formou uma marca avermelhada em seu braço, mas praticamente indolor devido a adrenalina. A expressão de fúria de Alexander se desfez em desprezo e culpa para si mesmo, abaixou a cabeça e olhou para o chão. Recuou o braço, que se amoleceu e parou na lateral do corpo. Deu alguns passos para trás, um pouco zonzo. Novamente, por longos momentos, somente o bipe acelerado do monitor ecoava pela sala.
Com a respiração pesada, Alexander quebrou o silêncio:
— Desculpe… eu… Harmonia, me desculpe. Me desculpe… Eu te amo, minha filha, eu te amo…
As salgadas lágrimas escorriam pela face do homem, que se sentia fraco, abjeto, nojento. Pela primeira vez havia levantado a mão contra Harmonia. Pela primeira vez havia atingido Luana. Tudo porque odiava imaginar sua filha debilitada incapaz de aproveitar em pleno esplendor uma vida normal na Terra. Aquela menina curiosa e hiperativa tendo que viver sempre com alguém ao seu lado para cuidar dela. Seu pai negava veementemente esta possibilidade.
A garota também se pôs a chorar. Luana era a única que ainda mantinha a compostura, mas era inegável a angústia que sentia em seu peito. Mais tarde, horas depois, ela também se debruçaria em lágrimas em um canto isolado da colônia.
***
Alguns sols se passaram. Alexander e Luana estavam deitados na cama de um dos dormitórios. A pequena janela arredondada apenas deixava entrar um leve brilho difuso dos refletores noturnos externos da colônia.
— Alex, eu pretendo ir com ela.
— Ah…
— Não gosta disso.
— Eu esperava ficar aqui até meu último dia. Agora não sei mais.
— Já estamos aqui faz quase 20 anos. As rugas, o condicionamento, as articulações, o raciocínio… não somos mais os mesmos. Talvez seja hora de voltarmos. Vamos sofrer um pouco, talvez um ano em reabilitação. Junto com Harmonia.
O homem olhava para o teto pensativo. Realmente, não seria uma má ideia retornar e finalmente se “aposentar”, na medida do possível. Claro, iriam sofrer um pouco com o assédio da mídia, mas nada que depois de alguns meses as pessoas se lembrassem, como todo ciclo noticioso. Teriam acompanhamento médico, dinheiro não era exatamente um problema (seus contratos previam salários, naturalmente, como todo trabalho, e por 20 anos o dinheiro foi para contas de investimentos, então tinham uma soma considerável). Não era isso que planejava quando embarcou para Marte, mas as prioridades dos humanos sempre mudam conforme envelhecem. Ele remoía tudo que tinha acontecido e sabia o que iria acontecer, procurando alguma resposta que lhe deixasse confortável. 20 anos. 12 módulos. Confinados em 6000 metros quadrados com as mesmas 40 pessoas. Seria mentira dizer que não havia um impacto psicológico grave, mesmos com as drogas para balanceamento de hormônios. A parte mais surpreendente é que eles eram os únicos a terem filhos na colônia. Por que ninguém mais?, se perguntava.
— Me deixe alguns dias para pensar nisso. Minha cabeça coça toda vez que tenho que tomar uma decisão difícil.
— Você ama sua filha, eu sei disso — “óbvio”, ele pensou. — Mas você sempre foi assim, um tanto inflexível demais. Já está um pouco velho para isso, não acha? — Luana riu.
— Bom, quanto mais velho mas ranzinza.
— Como vamos convencer o chefe e o centro de comando a aceitar Harmonia eu não sei, mas vamos conseguir, eu acredito.
— Ela acha maldição ter nascido aqui. Um pouco irônico, não? Gente querendo vir pra cá, e ela querendo ir pra lá. Como diziam, a grama do vizinho é sempre mais verde — suspirou profundamente. Alexander sentia um constante embrulho no estômago nos últimos dias.
— Acho que se eu nascesse em um lugar assim, inóspito, sem ninguém da minha idade para interagir eu me sentiria sozinha também.
Os dois trocaram mais algumas palavras em tom suave e sussurrado. Aos poucos seus olhos se fechavam e o mundo ao redor foi finalmente engolido pelo sono.
***
As solas de seu tênis impactavam o material sintético da esteira, emitindo um estrondo a cada passada. A sala de exercícios estava vazia, exceto pela presença de Harmonia que corria ofegantemente sobre o equipamento. Eletrodos conectados a sua pele enviam sinais através dos cabos que terminavam em um painel logo à frente da esteira, e os dados apareciam em uma tela diante de seus olhos. A garota tinha desligado todas as luzes da sala, apenas o brilho das telas banhava de forma suave o ambiente, mesclado com o tom alaranjado que vinha de fora através de uma pequena janela. Harmonia tinha acabado de começar, por conta própria, uma longuíssima sequência de treinamento para fortificar sua musculatura e capacidade respiratória. Apesar de seu desejo, ainda não tinha recebido permissão para ir a Terra, mas queria estar preparada fisicamente para se, ou melhor, quando, fosse aprovada. Ela tinha básico conhecimento médico de tanto conversar com Ye e de ler a documentação médica direcionado aos habitantes da colônia. Não era surpresa que no projeto mais caro e complexo já realizado pela humanidade quase toda situação possível de se acontecer a milhões de quilômetros tinha sido devidamente assessorada, analisada e documentada. E uma delas, o procedimento J-90 revisão 7, “Preparação para exfiltração planejada de longo prazo”, havia centenas de páginas voltadas a preparação física dos candidatos a retorno à Terra. Era uma leitura densa, voltada para os médicos em Terra e em Marte, repleta de jargões da área.
A única diferença é que não havia nada planejado para quando alguém nascesse em Marte e quisesse voltar para Terra. Porque, simplesmente, até aquele ponto, não havia dados suficientes. Os médicos responsáveis que teriam que adaptar e analisar cada caso individualmente.
Harmonia não queria esperar. Nem sendo ainda oficialmente candidata a exfiltração, Ye e sua equipe também não poderiam oficialmente fazer esta análise aprofundada. Mas claro que a garota já havia trocado bastante informação com a doutora sobre os preparativos físicos, e decidiu ao fim, por si só, fazer o seu plano de treinos. Os dados gerados enquanto fazia os exercícios iriam ser não-oficialmente analisados não só por Ye, mas também por Karl, um médico de sua equipe em que a doutora tinha extrema confiança.
Estar sozinha na sala de exercícios correndo na esteira não era uma coincidência. Foi uma escolha proposital baseada na escala de horários dos demais ocupantes da base — que, não se pode esquecer, recebiam salário para trabalhar na colônia, então teriam obrigações a fazer —. Ganharia um ambiente mais silencioso e tranquilo, e ainda evitaria o tedioso questionamento dos demais sobre o que ele estaria fazendo ali cheia de fios ligados ao corpo. Não que fosse um segredo, todos da colônia sabiam dos desejos dela, mas queria evitar ficar se justificando.
Um dos monitores de eletrocardiograma soltou um bipe e aviso na tela: possível arritmia detectada. Harmonia imediatamente acionou a parada da esteira e se segurou nos suportes laterais, enquanto observava a tela. O programa do monitor marcava em vermelho as seções do gráfico com a possível arritmia. A respiração estava pesava pelo cansaço, o suor escorria por sua pele e brilhava sob a luz azulada das telas. Tentou ficar o mais estática possível, controlando a respiração sem se hiperventilar. Segundos depois, o bipe parou e o aviso mudou de ativo para histórico.
No dia seguinte, com os dados em mãos, levou até Ye para análise.
— Vai ter que começar mais leve. Seu coração tem defeitos.
Ye olhava para Harmonia, sentada em uma cadeira na sala de enfermaria. A médica havia analisado os dados gerado durante os exercícios e percebeu, ou melhor, confirmou, que o coração da garota não era perfeitamente saudável.
— Como sabe, seu coração é grande e tem um formato não convencional. Por enquanto não é algo muito grave, mas tem que tomar cuidado, começa devagar e deixa a IA analisar. Pelo menos já conhecemos melhor seu limite físico — a médica continuou.
Harmonia estava um pouco cabisbaixa, desapontada.
— Acha que não vou aguentar?
— Sinceramente, ninguém sabe. Temos que tomar cuidado de qualquer forma. Como bem sabe não temos procedimentos a seguir no seu caso, apenas… nosso melhor julgamento — disse, em tom não muito otimista —. Vou levar isso até Karl, para ele fazer, hmm, um plano secreto, underground para você. Mantenha o bico fechado. Ele conhece muito melhor de condicionamento físico do que eu.
— Você vai escrever sobre isso no meu laudo, oficialmente, quando pedirem?
Ye suspirou profundamente e julgou a garota com os olhos. Ainda que quisesse ajudar Harmonia, mentir em um laudo médico seria um grave violação ética, principalmente sobre uma doença relevante.
— Eu faço o que acho certo. Não importa o que eu escreva, não é a mim que você tem que convencer.
Harmonia se sentiu envergonhada por ter sugerido que Ye faltaria com ética. Pediu desculpas, agradeceu timidamente e saiu da sala da enfermaria. Teria que elaborar um plano B para quando apontassem seus problemas em sua candidatura.
Faltava 391 sols para a chegada da nova missão à Marte.
***
Com o novo plano em mãos, agora feito por alguém mais profissional, Harmonia recomeçou seu condicionamento físico. Fortalecimento de musculatura, aumento da capacidade respiratória, aumento da força física, começando de forma bem mais leve e aos poucos ir aumentando conforme os médicos analisavam os dados. Todos os dias, sem faltar, a garota estava na sala de exercícios seguindo à risca tudo que lhe foi recomendado. Estava sempre conectada a eletrodos para gerar o máximo de dados possível para Ye e Karl. Ela também não se importava mais em responder aos questionamento dos demais da base sobre o motivo que ela estaria na sala todo dia — ao contrário, ela se orgulhava de estar ali, contando vantagem sobre como isso vai lhe ajudar nos seus dias na Terra. A gargalhada que nos últimos tempos havia desaparecido por causa da angústia em não saber se poderia ir a Terra agora aos poucos voltava a ecoar pelos módulos da base. Não só, a radiância contagiante de seu otimismo fez com que os demais aumentassem sua própria rotina de exercícios, especialmente aqueles que queriam voltar à Terra, antes mesmo de saberem que seriam selecionados. Isso fez com que a academia marciana ficasse quase sempre ocupada pelos habitantes da base.
Claro, eles tinham um acordo implícito de que Harmonia sempre teria preferência ao usar os equipamentos. Mas também tinham uma sutil inveja da jovialidade e energia da garota, que então tinha 16 anos terrestres de idade. Não há como negar que, apesar da incompatibilidade entre o ambiente que ela vivia e o que a genética humana havia esperado, ela estava nos anos áureos de sua aptidão física. Se ela treinasse diariamente sem excessos, com acompanhamento de sua amiga-médica Ye e mantendo o otimismo, talvez o sonho de ter uma vida normal na Terra fosse alcançado.
Talvez. Era uma aposta, Harmonia tinha jogado all-in. Não poderia sair do jogo.
Os dias marcianos pareciam se passar mais rápido do que nunca. A inescapável rotina de acordar, comer, trabalhar, comer, dormir poderia até ser considerada tediosa, mesmo que estejamos falando da primeira colônia em outro planeta, que até os desbravadores planetários eventualmente soltavam suas frustrações da rotina durante reuniões levemente alcoólicas animadas com discussões acaloradas. Porém, dentro de todos havia aquele sensação de que algo diferente estava para acontecer, uma semente de ansiedade que os deixava levemente mais animados. Faltava 329 sols para a chegada da missão, e 429 para o retorno à Terra.
Em uma destas reuniões barulhentes, Alexander se prontificou para ir atrás de Harmonia, que estava em algum lugar da colônia. Estava sóbrio, diferente de algum dos colegas, e saiu da sala multiuso a procura de sua filha. Estava sem o comunicador interno consigo e nem tinha passado pela sua cabeça pegá-lo (provavelmente no dormitório, mas ele também não tinha certeza). Andou de corredor a corredor e de módulo em módulo procurando a garota.
— Harmonia! Harmonia! — gritava, improvisando um alto-falante com a concha da mão. Sua voz reverberava nas estruturas metálicas da construção. Ele continuava a caminhar a passos rápidos pelos cantos da colônia, que parecia muito maior do que realmente era.
Não estava nos dormitórios. Não estava na estufa. Nem no almoxarifado. Muito menos na sala de exercícios, muito embora tenha visto os instrumentos de peso fora do lugar, concluindo que ela estava há poucos minutos ali. Talvez esteja no banheiro, pensou, enquanto seus olhos escaneavam cada canto de cada sala da colônia. Já um pouco frustrado, se encaminhou para seu próprio dormitório para pegar o intercomunicador. O jeito mais fácil, imaginou, em vez de sair perdido como uma barata tonta.
Selecionou o contato de Harmonia na lista e colocou o intercom no ouvido. Estranhamente, ouviu o som de toque do intercom de sua filha logo atrás de si e se virou na direção do barulho. Seus olhos se arregalaram e seu coração saltou ao ver a figura congelada atrás de si, como se observasse um vulto. Pulou para trás no instinto, antes de perceber que os cabelos negros de Harmonia envolviam com o rosto ensanguentado misturado às lágrimas.
— Harmonia, minha filha! O que aconteceu?
Ela tinha dificuldade para a falar, como se os impulsos nervosos do cérebro não chegassem em sua boca, seus lábios tremiam em resistência.
— Minha filha, senta, por favor, senta! — Alexander induziu ela até a cama onde se sentou.
Ainda sem conseguir falar, o pai afastou os cabelos para os lados observando de onde escorria tanto sangue: um corte profundo na sobrancelha direita, que já estava envolto em um hematoma roxo. Ele sabia que era caso de levar pontos, levando as mãos à cabeça da garota procurando por qualquer outro lugar possivelmente machucado. Não encontrou nada de errado além disso, concluindo que a única fonte de sangue era este corte. Então, selecionou no intercom o contato de Ye, esperando que ela estivesse com o intercom junto a ela. Após três tons de chamada, Ye atendeu.
— Alex?
— Harmonia está com um corte na sobrancelha necessitando de pontos. Chama Luana e venham cá no meu dormitório. Sejam discretos, por favor.
— Entendido.
Enquanto a médica e sua mulher iam até o dormitório, Alexander perguntou mais uma vez para Harmonia:
— Explica o que aconteceu. Onde se machucou? — enquanto esperava alguma resposta, ele foi até um pequeno armário de primeiros socorros que ficava dentro do quarto. Retirou uma maleta, que dentro tinha alguns itens médicos: gazes, algodão, desinfetantes, esparadrapos, antitérmicos, analgésicos, entre outras drogas e objetos..
A menina ainda não conseguia falar. Mas não era porque tinha sofrido alguma lesão ou porque o choro a impedia de formar frases. Era por causa das implicações daquele acidente. Alexander preferiu não mais insistir e focou nos primeiros socorros. Começou a limpar a trilha de sangue que escorreu de por cima do olho até o queixo, formando um arco em sua bochecha direita.
Tão logo, Ye e Luana apareceram na porta. Sua mãe instintivamente foi acolher Harmonia, embora naquele ponto ela não servia mais de muito ajuda. Colocou as mãos debaixo do queixo da filha levantando suavemente a cabeça para analisar a fissura e então a abraçou. Automaticamente havia compreendido que Harmonia estava assustada, mas que fisicamente estava bem, excetuando o corte, claro.
— Ela disse o que aconteceu? — a médica perguntou a Alexander.
— Ainda não.
Ye imaginou o que Harmonia temia.
Depois do abraço, Luana se afastou e Ye se aproximou. Tirou uma lanterna da maleta de primeiros socorros e apontou para o ferimento. Usou o desinfetante para limpar as mãos antes de tocar a região para verificar a profundidade do corte. Harmonia se retraiu de dor, mas se manteve firme conforme a médica analisava.
— Bom, foi até a hipoderme. Nada grave, hmm, vai levar sutura mas isso é rápido. Vamos até a enfermaria que já uso anestesia e fechamos o corte.
A garota se levantou e junto com seus pais caminharam lentamente até a enfermaria. Já deitada na maca hospitalar, Ye esfregou a anestesia no local e se preparou para fazer os pontos quando Harmonia começou a falar.
— Eu… estava levantando peso quando… perdi a força. Tudo escureceu e o peso caiu em cima de mim.
Luana e Alexander se entreolharam.
— Quanto peso, filha? — sua mãe perguntou.
— 60 quilos.
— Minha nossa Harmonia! Que perigo! Isso já está excessivo, não acha?
— Na Terra, sim.
Luana soltou vento pelas narinas. Tinha achado engraçado. Menos confortável estava Alexander, que imaginava outra tragédia.
— Por que fez isso sozinha? Se tivesse caído em cheio na sua cabeça?
— Mas pai, não caiu. Foi de raspão. Eu consegui segurar mais ou menos… mas…
— Mas o que, filha?
— O que vai escrever no meu laudo? — Harmonia disse quase sussurrando para Ye, que estava já quase enfiando a agulha para a sutura.
— Veremos depois, garota. Deixa eu trabalhar agora — e imediatamente cortou o assunto. Não era o momento para discutir esta tipo de coisa, pensou. O que importava é que a garota estava bem e não tinha passado de um susto.
Alguns minutos tinham se passado e Harmonia já estava de pé, com a postura recuperada e explicando o acidente. Ela tinha corrido quase 10 quilômetros na esteira momentos antes e quase sem descansar havia pulado para o levantamento de peso no supino. Então, em um dos movimentos, ela sentiu fraqueza e sua visão escureceu, e não sendo capaz de segurar a barra com força igual dos dois lados, acabou caindo inclinada e atingindo sua sobrancelha. Com isso, agora tinha uma cicatriz — pode-se dizer que ela estava ligeiramente contente com isso — e uma proibição por parte de Alexander de não fazer este tipo de treino sozinha, ao menos por enquanto. Em sua visão era uma regra que não fazia muito sentido já que obviamente ninguém ia ter tempo de segurar no ar uma barra em queda, mas aceitou para evitar mais conflito. Seu pai estava particularmente bravo com sua imprudência, e não queria mais chateá-lo. Aliás…
— Pai, por que estava procurando por mim?
— Ah, a gente tava fazendo uma pequena festa e queria que você participasse… — disse um pouco corado.
— Aahhh, você não consegue ser discreto, né?
Recomposta e já com as lágrimas secas, os quatro partiram da enfermaria até a sala multiuso, onde a maioria dos habitantes estava. Assim que entraram na sala, todos olharam para o curativo sobre o olho direito de Harmonia, se perguntando o que teria acontecido. Luana tentou desconversar, dizendo que tinha sido um pequeno acidente na academia, sem dar muito mais detalhes, e insistiu para que não perguntassem mais. Alguns olharam com preocupação a face com o curativo mais hematoma da garota, mas se seus pais disseram que estava tudo bem, não fazia sentido perguntar mais.
Neumann, o microbiologista, apareceu então de surpresa por trás dos três trazendo algo que parecia um bolo de aniversário, mas não era exatamente um bolo. Colocou a iguaria em cima de uma das mesas, alguém desligou as luzes e entraram num ritmo uníssono virados para a menina, que já esperava por coisa do tipo.
Naquela noite, a colônia A Small Step era certamente o lugar mais barulhento de Marte, com 40 dos seus habitantes cantando um parabéns muito bem animado. A algazarra toda era para comemorar o décimo sétimo aniversário terrestre de Harmonia.
***
Faltava 280 sols para a chegada, ou 380 sols para a partida de Marte. Todos, sem exceção, estavam reunidos na sala de reunião, diante de um monitor esperando o início da transmissão da Terra. Lucciano estava à frente de todos, também visivelmente ansioso para o anúncio da lista contendo aqueles que pisarão no solo da Mãe-Terra novamente. Para um observador interno, pode parecer que eles estão sentido mantido cativos, as as agências espaciais da Terra mantendo os moradores da base de reféns, impedindo a livre escolha de quem queira voltar. Embora haja um pingo de verdade nesta afirmação, não é trivial enviar e manter humanos por tanto tempo em outro planeta: a nave que chegará trazendo 40 novos ocupantes, só poderá levar embora 23, pois essa é a quantidade que suprimentos mais combustível podem suportar. Os tanques não serão totalmente reabastecidos com metano, pois este é produzido por uma usina conceito instalada na colônia, com capacidade limitada, diminuindo a carga útil da nave. Uma parte será ocupada com amostras científicas, especialmente rochas. Boa porção dos suprimentos trazidos será direcionado a colônia, restando muito menos para a volta. A agricultura da nave é extremamente pequena comparada com a da base, sendo incapaz de suprir muita coisa. A quantidade de oxigênio para os ocupantes também é limitada, mesmo com o sistema de reciclagem de ar (que consome bastante energia, por sinal, para converter o monóxido de carbono em oxigênio diatômico novamente). Juntando as limitações técnicas e cálculo de consumo de combustível com a massa total da espaçonave, 23 ocupantes foi o limite calculado para a maior segurança possível, que serão preenchidos na seguinte ordem, sempre considerando se o astronauta pretende voltar ou não: primeiro, os que precisam de cuidados médicos; em seguida, os mais velhos; e depois o de livre escolha, de acordo com as duas características anteriores. Os selecionados podem recusar a voltar, claro, e passa-se para o próximo da lista, até que sejam selecionados apenas 23. O que ficarem para trás irão na próxima missão à Marte, que ocorrerá somente 601 sols depois da última partida.
Exceto, Harmonia. Por ser a primeira marciana, e o que isso implica para sua saúde, existe bastante resistência para sua ida à Terra. Diferente dos demais, ela ter condições físicas anormais é um ponto a seu desfavor. Ninguém quer ser responsabilizado caso o pior aconteça e ela morra na viagem de volta ou sob a gravidade terrestre. Ela não assinou nenhum contrato sabendo dos riscos. E dá para dizer que existe um pouco de condescendência dos terráqueos por ela ser “adolescente”, e portanto não seria capaz de decidir por si só — diminuindo completamente todo o trabalho que ela fez na colônia.
Porém, acima de tudo, ninguém queria vê-la sofrer.
De qualquer forma, quase todos na sala estavam com as mãos suadas de nervoso, burburinhos vibravam os tímpanos, banhando o ambiente com sons alienígenas indistinguíveis. Apenas 8 habitantes tinham decidido não se candidatarem, portanto seriam 33 concorrentes para os 23 lugares. Obviamente, a transmissão não seria ao vivo, mas assim que os dados do vídeo fossem recebidos, alguém apareceria na tela anunciando os escolhidos.
— Está bem, filha, muito nervosa?
Alexander perguntou a Harmonia, ao percebê-la roer a unha do mindinho.
— Claro, um pouco. Minha cabeça tá em branco.
Harmonia sentia o coração vibrar no peito. Inclinou a cabeça para trás, esparramando os cabelos negros que tinham crescido e agora terminavam na altura da lombar para detrás do encosto da cadeira. Fixou o olhar no teto, aquela luz fria de led que nada se parecia com o sol visto da atmosfera marciana. O uníssono das conversas paralelas parecia ser a única coisa que preenchia sua mente, um vazio barulhento. Fechou os olhos tentando se acalmar um pouco, mas parecia que quanto mais tentava pior ficava. Jogou os braços que apoiava nas pernas para as laterais, parecendo um zumbi meio acordado. 17 anos. 12 módulos. Este era o espaço disponível que tinha para viver.
Absorvida pelo vazio da mente, não percebeu o tempo passar. Sua mãe lhe deu uma leve cotovelada para que despertasse do transe. O monitor ligara e a transmissão havia começado.
Um homem careca vestindo uma espécie de macacão de astronauta azul surgiu na tela, sentado detrás de uma mesa de entrevistas, com microfones carregando logomarcas de diversas emissoras alinhados diante dele, acompanhando de mais meia dúzia de pessoas em ambos os lados, à mesa. Flashes refletiam em seus rostos. A placa triangular diante de si lhe apresentava: John L. Garfield, diretor de operações da NASA.
— Hoje é um dia memorável para a humanidade, e especialmente para todos os moradores da colônia A Small Step, em Arcadia Planitia, em Marte. Hoje, grandes desbravadores, homens e mulheres, corajosos, resilientes, de qualidades inigualáveis, que há quase duas décadas sacrificaram o conforto dos seu lares e o acolhimento de suas famílias em troca de um sonho audacioso carregado a muito suor e sangue, o estabelecimento da primeira colônia em Marte, finalmente terão a chance de seu reunirem novamente com seus entes queridos e de lamentarem aqueles que se partiram durante esta jornada. Cada um destes embaixadores do espirito humano tem a gratidão de cada um de nós pelo compromisso de arriscarem sua vidas para expandir o conhecimento do espaço e construírem o primeiro passo de uma civilização realmente interplanetária. Quero novamente expressar minha…
Harmonia rodopiou a cabeça com os olhos entreabertos, olhando para o teto. Não estava aguentando mais a ansiedade, parecia que algo ia explodir dentro de si. O discurso do diretor da NASA era interminável, recheado de palavras bonitas e pomposas. De vez em quando a câmera focava nos rostos dos familiares e amigos do colonizadores que tinham ido acompanhar presencialmente o anúncio, que era feito em um grande salão.
— …celebramos especialmente Harmonia, uma vida especial, a primeira humana a nascer em outro planeta, longe, muito distante onde qualquer um de nós aqui já foi. Hoje com 17 anos, é uma corajosa alma parte central da exploração humana, símbolo de nossa capacidade de adaptação e sobrevivência. Sem mais aborrecimentos, anunciarei os selecionados.
Imediatamente sua atenção voltou para a tela. Corrigiu sua postura na cadeira e como um ímã seus olhos grudaram na transmissão.
— Annie Poultron. Beth Gucci.
— Pai? — ela olhou para ele, que parecia imóvel, como se evitasse o contato visual com a filha.
— Bruno Schultz… Gustav Salazar…
— Agora? — pensou, gritando internamente.
— …Kei Matsubara…
Levantou subitamente da cadeira, que se arrastou no chão emitido um grunhido irritante, para a surpresa dos demais. A letra H havia sido pulada da lista alfabética. Pareceu ficar tonta, seu corpo tremia, a gravidade parecia três vezes maior. Seus pais se levantaram quase juntos para acolher a garota que estava visivelmente abalada. O chefe Lucciano fez um sinal com os dedos para a garota ficar em silêncio e não atrapalhar os demais.
— …Mei Yuan Liu…
Suas pernas enfraqueceram e ela desabou no assento, um breve câmera lenta devido a baixa gravidade do planeta. Inclinou a cabeça à frente, observando o chão cinzento entre as pernas, que a sugava com a força de um buraco negro. As palavras do diretor se misturavam a ruído branco em sua cabeça, mas ela ainda se segurava a um pequeno fio de esperança de que após o final do anúncio em algum momento seu nome seria anunciado separadamente, já que ela era uma “vida especial”, como aquele careca tinha dito.
Mas ao término da lista, apenas aquele blá blá blá espacial, pensou, e frases para sair nas manchetes das redes sociais, quase que burocrático. Nada de Harmonia. Luana. Alexander. Nada que indicasse que seu pedido tinha vindo à tona publicamente. Era algo que com certeza evitariam ser tão explícitos ao público em geral, pois como agências espaciais teriam que manter a compostura.
Sua frustração e desapontamento aos poucos se transformavam em uma espécie de raiva, um calor infernal que subia da ponta dos dedos até os extremos de seus fios de cabelos. Seu rosto tensionou, as veias saltaram formando rios arredondados nas laterais da testa. Era tão nova que ainda não tinhas rugas, mas dava para dizer que em poucos segundos tinha envelhecido uns vinte anos.
De abrupto, achou forças nas pernas e se levantou. Seus pais tentaram reconfortá-la partindo para um abraço ou carinho, mas ela subitamente recusou:
— Me deixem — balançou os braços se desvencilhando das tentativas de contato físico e começou a caminhar em direção a entrada da sala, sob os olhares curiosos e piedosos dos demais. Seus pais tentaram acompanhar a garota, mas ela parou no meio do caminho, girou 180 graus e como nunca fizera antes, juntou todo o ar e a plenos pulmões gritou como nunca havia gritado antes, praticamente ecoando por toda a rarefeita atmosfera de Arcadia Planitia, com seus olhos avermelhados preenchidos com insatisfação e frustração, deixando todos estonteados e assustados com a inesperada reação:
— ME. LARGUEM. AGORA! ME DEIXEM EM PAZ!
A passos rápidos a garota atravessou o portal da entrada e desapareceu na escuridão do corredor que se ligava a sala. Os sons de seus pés pesados aos poucos esmaeciam. Luana levou a mão à boca, incrédula. Estava prestes a chorar.