Sabe, estava entediado de ficar em casa usando aquele dispositivo de realidade virtual que já cansava minha visão. Embora a experiência do jogo, admito, é bem agradável e viciante, é um pouco estressante e cansativa pela quantidade de informação que aparecia de uma vez só. Aquele display cheio de números e símbolos emaranhados me mostrando as estatísticas do meu personagem me cansava e por isso desistir de jogar naquele momento. Também, já fazia duas horas que estava imerso naquilo, e estava também cansado de ficar em pé e correndo por aqueles túneis. Larguei os óculos de VR e os fones de ouvido e girei meu pescoço pela sala, tentando me acostumar com a luz escura do ambiente. Abri a janela para ventilar um pouco, e aquela cor rosada de fim de tarde invadiu meu quarto, me chamando para um passeio. Devia ser umas 21 horas, o primeiro sol, uma do tipo branca, já estava abaixo da linha do horizonte, enquanto o segundo sol, uma anã-vermelha, ainda jazia alguns graus acima do horizonte. Em direção ao alto do céu, as cores variavam suavemente do rosa e laranja até um azul esverdeado. Ainda era possível ver duas das três luas, uma ao leste e outra ao oeste, a primeira ocupando boa parte do céu, sendo que eu precisava da minha mão inteira com o braço esticado para tirá-la da minha visão, enquanto a outra não precisava de mais do que três dedos juntos. Ainda, cruzando o céu de forma inclinada de uma ponta a outra, os anéis de dejeitos e rochas espaciais que se mesclavam suavemente ao céu esverdeado, sem nuvens. Era um mundo bem diferente do mundo subterrâneo de Alternative Underworld, o jogo que tinha acabado de desligar.
Ao fundo da paisagem, uns 30 quilômetros de onde estava, atrás de baixas cordilheiras montanhosas, estava a torre de energia de espectro largo, recebendo em seu topo um feixe de luz branca de formato cilíndrico, vindo diretamente das constelações de satélites que absorviam quase qualquer tipo de energia vindo do espaço e mandava direto à terra naquele feixe denso, que ia do rádio até ondas gama, suprindo boa parte da energia da nação. Alta tecnologia, sabe. Aquela tinha sido uma constante na paisagem desde de quando nasci, e não me incomodava com aquela luz nem aquela torre.
Desci as escadas de minha apertada casa, que tinha nada mais que um único quarto e um banheiro na parte de cima, e uma cozinha e sala na parte debaixo. Símbolo dos tempos modernos, construções apertadas e empilhadas lateralmente. Boa parte da cidade era assim, e novamente, não me incomodava muito porque era assim desde que tinha nascido, sabe?
Fui em direção à porta da sala, para a rua. Vi algumas pessoas passeando com seus cachorros, crianças jogando um esporte antigo, conhecido como futebol, utilizando pedras como metas. Coisa estranha crianças brincando na rua, pensei que elas já tinham sido absorvidas para a realidade virtual, mas parece que algumas mantinham essa tradição antiga. Um ou outro carro autônomo passava pela rua, buzinando levemente para as crianças liberarem temporariamente a via, velhinhos sentados nos bancos lendo um jornal eletrônico. Ou seja, uma vida quase pacata de subúrbio de cidade grande, depois do horário comercial. Eu apenas comecei a andar em direção ao sul do subúrbio, onde havia uma colina suave que permitia ver o restante da cidade. Tipo um parque, sabe?
Passei por uma avenida mais movimentada, atravessando alguns cruzamentos e passando em frente das lojas que começavam a fechar, exceto por alguma ou outra que esperava ter alguma clientela no início da noite. Interessante que mesmo que se possa comprar tudo pela internet que veículos autônomos entregam em sua casa, as pessoas ainda gostavam de sair às ruas para fazer as compras ao vivo e a cores. Para mim tanto fazia, já tinha nascido num meio onde as pessoas compravam as coisas pela internet. Eu saía, mas não para ter contato com as pessoas, mas porque gostava de observar a paisagem, o pôr-do-sol e essas outras frescuras de gente estranha. Saía sem meu dispositivo móvel de comunicação justamente para evitar ter contato com outras pessoas ou meus jogos.
Aos pés da colina segui a trilha feita de cascalho que dançava na subida, enquanto pouco a pouco o segundo sol se punha e o verde ficava cada vez mais um azul escuro. Encontrei mais pessoas passeando com seus cachorros, mais crianças brincando na terra e seus pais observando e alguns casais de velhinhos tomando ar fresco. Estranhamente (ou não, pois eu sabia onde eles estavam), poucas pessoas de minha idade passeando por ali, apenas eu, atraindo os olhares daquelas pessoas. Ah, dane-se.
Finalmente, no pico da colina, talvez uns 100 metros acima do nível da rua lá embaixo, uma placa dizia “Monte das Estrelas Cadentes”, porque, em alguma era distante quando as luzes da cidade nem da torre de energia atrapalhavam, as pessoas subiam ali para ver, bem, você sabe. Eu nunca vi uma estrela cadente ali, embora tenha visto uma única vez, aos 10 anos de idade, em algum lugar nos rincões da nação.
Ali fiquei observando o sol se pôr totalmente, que eu calculava que iria se pôr em vinte minutos (na verdade, meu relógio de pulso já dizia isso automaticamente, calculado pela posição dele no planeta). O lado dos anéis do lado oposto ao sol estava escuro, com uma faixa de transição bem definida entre os lados. A lua maior havia subido mais um pouco, enquanto a estrela anã-vermelha se punha no horizonte. Sistemas binários, sabe. Um dos mais comuns no Universo. Seria estranho se existisse um planeta habitável num sistema unário, mas quem sabe um dia descubramos isso. Assim, aos poucos, os últimos raios de sol do horizonte que davam o aspecto róseo e alaranjado do céu sumiram, dando fim ao dia de 18 horas e 31 minutos, pois estávamos no verão, de um ciclo de dia e noite que levava 31 horas e 22 minutos e 3 segundos. Não pergunte que inventou esse número quebrado bizarro, bem que poderíamos normalizar para uma outra unidade de medida que fizesse mais sentido. Mas nós estamos acostumados desde o nascimento a contar assim, sabe, então tanto faz.
Foi então que senti alguém passando correndo pelas minhas costas e me virei para olhar. Antes que eu pudesse ver quem era, uma bola de papel escorreu pelo meu pescoço e iria cair em direção ao chão, mas consegui no reflexo pegá-la ainda no ar. Virei o pescoço para trás para ver quem era, mas não enxergava mais ninguém. Imaginando ser uma brincadeira de pirralho, pensei em jogar a bola de papel longe. Mas sabe, não resisti à curiosidade e abri o papel amassado. A folha branca enrugada estava escrita em letra cursiva muito bem caligrafada, que parecia ter saído de um programa de computador, mas dava para ver claramente que era escrita em caneta preta. O papel dizia:
“Quando o raio descer, vire para trás, feche os olhos e abra a boca.”
Fiquei sem entender nada, mas logo descartei que era azurra de criança devido à letra cursiva espetacular e a construção gramatical correta. Estonteado, olhava para o papel, olhava para trás, analisava que coisa era aquela, e fiquei instigado.
Menos de um minuto depois, o fluxo de luz na torre que era sempre contínuo, deu umas falhadas, tipo umas engasgadas, sabe? A luz estava intermitente, brilhando em intervalos irregulares, com brilhos irregulares. Até que luz parou de descer dos céus. Três segundos depois, um raio branco muito forte desceu em direção a torre. Sem me perguntar o porquê, fiz o que papel mandava. Virei para trás, fechei bem os olhos e me joguei na grama fofa. Abri a boca e tampei meus ouvidos com as mãos: a onda de choque iria ser forte, agora eu entendia isso. Ainda assim, muita luz atravessava minhas pálpebras, dando uma visão avermelhada. Trinta mil dividido por trezentos dá 100. Tenho cem segundos mais ou menos antes da onda de choque e do barulho chegar. Mas a luz já era intensa, e eu me encolhia no solo. O coração acelerado, só esperando o momento do estrondo.
E mais ou menos nesse tempo, ele veio. O chão tremeu, o barulho muito alto, pude ouvir janelas quebrando e gente gritando, o ar revoando ao meu redor enfurecido. Logo que o som da onda de choque parou e a luz se extinguiu eu me virei devagar em direção à cidade e à torre.
A torre estava destruída, pegando fogo. A cidade estava com carros virados nas ruas, gente gritando, vidros estraçalhados, alguns prédios parcialmente destruídos, gente caída no chão, as crianças que brincavam por ali gritavam. Eu estava sujo, coberto de terra, mas bem fisicamente. Em minhas mãos, apenas o papel que alguém tinha me passado. Alguém que queria me proteger. Estava assustado, e era desesperador.
Sabe, o pior de tudo é que dessa vez eu não podia simplesmente tirar meus óculos de realidade virtual.