As cigarras cantavam de forma estridente e desorganizadas, ecoando o apito agudo pelas desoladas vielas elevadas que cortavam as planícies do que seriam plantações de arroz, caso se elas tivessem sido cultivadas nos meses anteriores. As vielas, vistas de cima, formavam grades retangulares, separando os terrenos secos e com mato mal conservado um dos outros. Não tinha mais quase ninguém que tivesse vontade e conhecimento para trabalhar naqueles terrenos de Kinmen, numa região empobrecida, diante do risco iminente da guerra e da movimentação constante de atividades militares. Muitos haviam emigrado para a ilha principal de Taiwan, fechando comércios e outras indústrias, e os habitantes que restavam ou era muito apegados ao lugar ou tinham aceitado ficar em troca de receberem compensação suficiente para atender as demandas dos militares, que formavam a maior parte da população do arquipélago de Kinmen.

O calor era insustentável. Yueh caminhava em uma das vielas com sua pasta escolar em uniforme escolar, o suor em sua testa refletia um brilho metálico diante do sol escaldante. O verão do ano de 2029 estava anormalmente quente, mesmo considerando as mudanças climáticas. Ela retornava da escola, solitariamente, para casa, observando a desolada planície com algumas montanhas ao fundo. Casas de madeiras em ruínas, fios dos postes rompidos, pneus largados ao relento. Até mesmo a escola passava a sensação de vazio: sua classe tinha apenas 8 alunos, e a escola como um todo não tinha mais que 50 estudantes, dos 5 anos de idade até os 17, cujos pais tinham decidido ficar na ilha, apesar do risco de guerra. Havia um constante estado de tensão sempre que ouviam notícias da relações entre China e Taiwan, que era refletido diariamente no estado psicológico dos alunos. O medo de eles, seus pais ou amigos estarem envolvidos numa grande guerra era perceptível nas atividades escolares comuns, como nas aulas de artes ou nos textos das redações. Faziam rotineiramente simulações para se protegerem de ataques aéreos, nucleares e até mesmo químicos, e recebiam com frequência treinamento de primeiros socorros. Pelo menos, esta aula Yueh gostava.

A garota só queira chegar em casa e tomar um chá gelado. O trajeto entre a escola e sua casa demorava de 20 a 30 minutos, mas naquele dia insuportável parecia demorar mais de uma hora. O barulho da cigarras incomodava a menina, que tampava os ouvidos quando se aproximava dos indivíduos mais estridentes.

Sentia a ponta da orelha vibrar. Naquela tarde quente de verão, um ruído se sobrepôs ao dos insetos barulhentos. Parecia uma ambulância. Não, polícia. A buzina de um navio.

Nada disso. Era a sirene de um ataque aéreo. Yueh congelou na estrada, e olhou para o céu azulado. Era um lindo dia, com quase nenhum nuvem, sem vento para refrescar. Lembrou imediatamente do treinamento na escola e girou, procurando algum lugar para se esconder. Percebeu as ruínas de uma casa de madeira velha uma centena de metros à frente e correu em sua direção. O estado degradado da casa, com as janelas quebradas, o teto caído e sem portas não lhe dava confiança de proteção, a cobertura mais próxima que tinha encontrado. Observou o canto mais protegido da ruína, se aproximou desviando dos pedaços de madeira ao chão e móveis abandonados e deitou ao chão, protegendo a cabeça, exatamente como tinha aprendido. A sirene continuava a tocar, um longo e eterno sinal sonoro, que ecoava pela planície se sobrepondo a si mesmo, reverberando de forma furiosa.

Por vários minutos a sirene continuou. Yueh perdeu a conta de quanto tempo estava deitada no chão, com as mãos na cabeça. Seu coração palpitava sem parar, com medo, mas não derramava uma gota de lágrima. Só chora quem está triste ou está com dor, era seu lema pessoal. Diferente de outras crianças, Yueh dificilmente derrubava lágrimas quando estava com medo. Talvez tenha sido o jeito peculiar que seus pais a havia criado.

Sua mente estava em branco. Não percebeu o tempo passar.

— Parou…?

A sirene subitamente silenciou. Depois de uma dezena de minutos, já estava se sentindo desconfortável de estar deitada naquele chão sujo. Levantou, bateu a poeira do uniforme e recolheu sua pasta. Saiu do casebre e olhou para o horizonte, reparando numa coluna de fumaça que subia ao longe.

— Aquilo… foi um ataque? — pensou, e acelerou o passo em direção à sua casa. Estava com medo, claro, e queria ver seus pais, se eles estavam bem. Sentiu uma dor no coração de angústia ao perceber que estava longe deles nessa situação estressante, e os passos rápidos se transformaram em uma corrida. O desconforto causado pelo calor era apenas um bicho insignificante diante da palpitação que sentia.

Sua casa ficava em uma pequena vila, com um punhado de outras casas na mesma rua. Entre as casas, uma relva não muito bem cuidada com algumas galinhas caminhando de um lado pro outro. A casa não era muito grande, sala, cozinha, dois quartos e um banheiro. Do lado de fora, uma pequena varanda no nível do solo com uma mesa e duas cadeiras. Abriu a porta correndo, largando a pasta no chão e entrando sem nem mesmo tirar os sapatos, gritando pela casa procurando seus pais:

— Mãe! Pai!

Não havia muito onde procurar. A sala tinha uma porta dos fundos, que dava para um pequeno pomar que cultivavam atrás da casa, com algumas verduras e legumes já pronto pra colheita. Girou os olhos enquanto continuava a chamá-los, sem nenhuma resposta.

Tinha medo que as sirenes tocassem novamente a qualquer momento e não queria ficar longe de seus pais. Disparou de volta para a entrada da casa e saiu em direção à rua, deixando a porta aberta. Se eles não estavam em casa só poderiam estar em outro lugar: na clínica médica.

Os pais de Yueh eram dois médicos que operavam uma clínica pública em Kinmen. Mesmo após a emigração em massa da ilha, tinham decidido ficar para cuidar dos moradores que restavam, a maioria idosos, que ficariam com quase nenhum atendimento médico na região. Por serem funcionários do governo, o pagamento não era mau para aquela ilha quase desolada, mas acima disso tinham um orgulho muito grande como médicos para deixaram a clínica para trás.

Yueh chegou ofegante na porta da clínica, abrindo a porta de correr com vigor provocando um enorme estrondo. A sala de recepção não era muito grande, revelando a mesa da recepcionista do lado direito, com um computador em cima e o resto da superfície ocupada com papéis. Do lado esquerdo da sala, havia duas fileiras de três cadeiras cada, uma atrás da outra, voltadas para a recepcionista. Nas paredes, diversos cartazes com informações de saúde e outros comunicados públicos. Os três pacientes que esperavam nas cadeiras na primeira fileira olharam para a criança, compreensivos do estresse causado pela sirene numa menina de 10 anos.

— Meus pais estão aqui? — disse sem nem cumprimentar.

— Eles estão em atendimento agora, Yueh, espera ali um pouco — a recepcionista apontou para uma cadeira vazia.

— Só quero saber, eles estão bem, senhora Wang?

— Estão sim, por isso aguarde um pouco.

— Tudo bem.

Yueh sentiu um alívio enorme, ela se sentia flutuando, mas ainda assim era importante que os vissem em pessoa. Wang saiu de trás da mesa e fechou a porta que a garota havia esquecido de fechar, não sem antes sentir o bafo quente que invadiu a pequena sala de espera, desfazendo em parte o árduo trabalho do ar-condicionado.

A menina então se sentou na segunda fileira, ajeitando a saia do uniforme, e se desculpou a Wang for ter esquecido de fechar a porta.

Um dos senhores de idade que estava na espera se virou para Yueh atrás de si e então disse:

— Não se preocupe Yueh, eu já escutei várias sirenes dessas e não era nada.

Yueh olhou para o homem, negando com cabeça. Ela o conhecia de algum lugar, mas não lembrava o nome.

— Mas eu vi desta vez, assim, deste jeito, a fumaça — a garota demonstrava com as mãos o formato da coluna de fumaça que havia visto. — Desta vez, não foi sirene falsa.

Todos que estavam na sala olharam para ela com um misto de desconfiança e preocupação. Era verdade que embora o alarme de ataque aéreo houvesse soado pouquíssimas vezes, em todas as vezes havia sido um alarme falso. Sempre que isso acontecia, um dos medalhões do exército vinha a público pedir desculpas mas nunca dava explicações claras do motivo dos alarmes. Não era exagero dizer que somente as crianças ainda acreditavam nas sirenes, enquanto os adultos continuavam com a vida normal como se nada tivesse acontecido. Exatamente como o garoto que falsamente avisava do lobo.

Até o momento que o lobo era de verdade.

Alguns minutos depois, um carro em alta velocidade que parecia que ia colidir com a porta da clínica freou bruscamente, cantando pneu e levantando o cheiro de borracha queimada no ar. Do lado do motorista saiu uma mulher de meia idade gritando desesperadamente:

— Por favor, alguém me ajude, por favor!

Wang se levantou da mesa, confusa e abriu a porta. Não precisou nem pôr os pés para fora para perceber pelo para-brisa o motivo do desespero daquela mulher. Os demais pacientes, curiosos, se levantaram e também olharam para o carro, encontrando uma visão terrível.

— Ajudem meu marido, preciso que ajudem ele!

A mulher estava embebida em sangue, dos pés ao rosto, desorientada, fragilizada, já do lado do passageiro com a porta aberta do lado do passageiro. No assento, um homem desacordado com o rosto desfigurado, a roupa rasgada, os intestinos e gordura abdominal aparentes, a mão direita decepada. Até mesmo Wang, que trabalhava junto aos médicos há mais tempo que poderia imaginar, levou a mão à boca como se fosse vomitar, pois nunca tinha visto um ferimento tão horripilante antes. Dois dos outros pacientes, ambos também idosos, cobriram e viraram seus rostos para evitarem assistir àquela coisa terrível. O senhor que havia conversado com Yueh levou a mão à testa em incredulidade, por reconhecer que o homem ferido era seu cunhado.

— Irmã, irmã! O que aconteceu?

— Um míssel, um drone, eu não sei! Nossa casa foi destruída… — a mulher chorava descontroladamente, gritando.

— Minha nossa, este é o Huang? — o rosto estava tão desfigurado que o senhor queria ter certeza que aquele homem era seu cunhado.

— Sim, é o Huang, meu Deus…

Com toda essa comoção do lado de fora, Yueh se levantou e saiu da sala de espera, observando a mulher que chorava e o homem que a confortava. Todos ali estavam em estado de choque que não perceberam que a criança havia passado por trás deles e observava fixadamente aquele homem terrivelmente ferido encostado no banco do passageiro, imerso em um banho de sangue com as tripas sobre seu colo. Yueh ficou congelada, com a boca semiaberta, os olhos arregalados. Aquela imagem sombria estava fixando em seu olhos de uma forma que ela jamais iria esquecer, a primeira vez que teve contato com uma causalidade de guerra, aos 10 anos de idade. O rosto do homem era tão irreconhecível que mais parecia um monstro deformado, um demônio que aparecia nos contos tradicionais que lera na escola.

— Yueh?

Seu pai apareceu à porta, deixando o paciente que estava atendendo em seu consultório para verificar o motivo da barulheira e choradeira. Assim que pisou o pé para fora do clínica e se aproximou da vítima, se virou para trás e agarrou a filha:

— Fecha os olhos, fecha os olhos!

Tão logo a pegou no colo e a levou para longe do carro, em direção a um pequeno mercadinho de frutas e legumes do outro lado da rua. Era um dos lugares onde sabia que poderia pedir alguém para cuidar de Yueh por alguns momentos.

— Senhora Liu? Preciso da sua ajuda! Está aí, senhora Liu?

Ele gritou para dentro do mercado, chamando pela dona do estabelecimento. Logo, ela surgiu a partir de uma porta de cortina dupla que ficava tão logo atrás da caixa registradora.

— Doutor Hsing, o que foi?

— Cuide da minha filha, por favor. Tenho um atendimento urgente a fazer. Peço desculpas por isso. Não deixa ela ir até a clínica.

A dona do mercadinho não conseguiu entender muito bem o que estava acontecendo do outro lado da rua, mas tinha certeza que tinha visto um rastro de sangue próximo ao carro.

— Aquele carro, é do Huang?

— Não posso explicar, preciso socorrer um paciente. Só fique com Yueh, leve ela para dentro e não deixe vir nem ver a clínica.

O doutor colocou a menina no chão, que ainda estava petrificada, e lhe deu um beijo na testa, se despedindo. Seus braços não se moviam e também não dizia uma única palavra.

— Fique aqui, Yueh, volto depois.

Deixou o mercado correndo de volta à clínica. A senhora Liu deu a volta no balcão e segurou na mão de Yueh, que não reagiu, como se tivesse processando o que tinha acabado de ver, e a puxou para a parte interna da loja. Fez a garota sentar em uma cadeira e ainda ofereceu um doce que tinha a venda para a garota, que parecia completamente isolada do resto do mundo, ignorando rudemente a oferta. Yueh estava em estado de choque.

Não havia mais nada que o médico pudesse fazer. Os ferimentos eram obviamente fatais. Huang estava morto. Como médico a atestar um óbito, tinha agora que cuidar do corpo até que as autoridades pudessem recolhê-lo e preencher alguns documentos legais. Voltou para dentro da clínica para chamar a esposa para ajudá-lo:

— Tsu-ching, venha cá, temos um óbito aqui.

A médica apareceu à porta de seu consultório, deixando a paciente que atendia com olhar perplexo. Todos eles tinham ouvido a comoção de momentos antes, mas jamais imaginavam que alguém tinha sido morto, de forma horrorosa, devido a um míssil ou drone. Um ataque aéreo. Porém, o que todos ali na clínica haviam imediatamente compreendido era que o incidente anunciava algo muito mais terrível, que tanto temiam mas que se recusavam a acreditar: era o início da guerra. Guerra que mudaria a vida de milhões de pessoas, inclusive de Yueh. Tão logo, a pacata ilha de Kinmen se tornaria o inferno na Terra.

A pequena clínica não era adequada para este tipo de emergência. Tinham apenas um único saco mortuário para colocar o corpo, e não tinham nenhum tipo de refrigeração. A médica ligou para a polícia imediatamente e autoridades de saúde explicando a situação e prometeram que mandariam pessoal certo para retirar o corpo do local e fazer uma autópsia adequada. O casal Hsing estavam mais acostumados com problemas de saúde e pequenos acidentes domésticos, então temiam que começasse a chegar mais gente com ferimento horríveis na clínica. Seriam incapazes de darem um atendimento adequado além dos primeiros socorros. O hospital mais próximo era o da base militar, mas se a guerra tinha sido deflagrada, a base militar era um óbvio alvo. Só teriam um hospital do outro lado da ilha, e fora isso, só uma remoção por barco ou avião para a ilha principal, a 100 quilômetros de distância. Isto se o espaço aéreo ou marítimo ao redor de Kinmen estivesse liberado. Talvez nem mais permissão para deixarem a ilha tivessem mais.

Não demorou muito para que as sirenes voltassem a tocar. Como se quebrasse o feitiço sobre Yueh, ela finalmente reagiu ao ambiente e percebeu que não estava mais na clínica. Escapou da pequena sala do mercadinho facilmente, já que Liu que pela idade não teria forças para correr atrás de uma criança tão ágil. Seu objetivo era voltar para a clínica, enquanto as sirenes soavam. Tinha que estar ao lado de seus pais, a qualquer custo.

Viu a poça de sangue no assento do carro, o rastro vermelho no chão que partia do veículo até a entrada da clínica, e abriu a porta de correr que tinha marcas vermelhas de dedos. Na recepção, o senhor Jiang confortava sua irmã Li, segurando sua mão. A mulher aparentava ser de meia-idade, em torno dos 40 anos. Um dos senhores que estavam na espera conversava com sua família pelo celular, dizendo que já iria para casa ficar com eles. O terceiro não suportou ver aquela cena explícita e foi embora, enojado e chocado. Além disso, todo o atendimento naquele dia seria encerrado, pois teriam que fazer a limpeza da clínica e lidar com as burocracias daquele incidente. Seria até um desrespeito alguém querer se dar o luxo de reclamar da interrupção do atendimento, dada as circunstâncias. A pequena clínica não era preparada para lidar com ferimentos graves, muito menos fatais.

— Yueh? O que está fazendo aqui? Era pra você ter ficar com a senhora Liu — Wang reprimiu a criança, se levantando da cadeira para levá-la para fora.

— Eu quero ver meus pais, por favor — a menina implorou para a recepcionista, cruzando as mãos, se esquivando dela ao perceber que seria levada a força embora. Nada impedia que Yueh entrasse correndo em direção ao interior da clínica para procurar por seus pais, mas tinha um enorme respeito por Wang. Seus pais a haviam instruído a sempre respeitar a atendente enquanto eles trabalhavam. Yueh olhou para o corredor que levava aos consultórios e às partes restritas da clínica, hesitante. As sirenes pela ilha continuavam a tocar, fazendo seu coração doer.

— Eles estão em atendimento. Não pode atrapalhar o paciente — Wang surgiu na entrada do corredor, bloqueando a passagem.

— Ele já morreu, senhora Wang. Eu vi com meus olhos.

Era óbvio até para uma criança que o paciente estava morto. E nem precisava ter sido criada por um casal de médicos para saber disso.

A esposa do falecido não parava de chorar aos ombros do irmão. De certa forma, ao escutar as dolorosas lamentações, tanto Wang quanto o outro paciente que ainda restava na sala de espera pareciam que podiam sentir a mesma dor. Empatia.

Yueh se virou em direção aos irmãos, observando Li em seu sofrimento, transbordando de lágrimas. Como se desistisse de invadir os consultórios, em passos silenciosos avançou em direção aos irmãos. Li estava com a cabeça repousada sobre o ombro do irmão e a mente em branco não percebeu que a criança se aproximou gentilmente. Então, Yueh subitamente disse, com a voz meiga porém solene:

— Meus pêsames, senhora Chang. Senhor Chang vai renascer como um pássaro e te proteger de cima.

Li levantou os olhos em direção a menina, olhos marejados, surpresa. Não esperava que Yueh estivesse lidando com a situação de uma forma tão calma. Esperaria que a menina estivesse chorando e gritando em estado de choque, mas Yueh parecia tão firme e empática. Li afastou a cabeça do ombro de seu irmão, e ele por um momento pensou que ela fosse tratar de forma rude Yueh. Estava pronto para pedir desculpas por qualquer indelicadeza que a irmão dissesse.

— Obrigada, pequena Yueh — a voz distorcida e ruidosa. Ore por ele, por favor.

Jiang ficou aliviado.

— Vou acender um incenso para ele. Para que renasça como um pássaro.

— Sim, querida. Faça isso, por favor. Meu Huang…

Yueh se curvou diante de Li, em respeito, e se afastou, sentando em um cadeira na fileira da frente, ao lado do outro senhor, tomando cuidado para não sujar os sapatos no rastro de sangue do chão da clínica.

— Wang! Wang! — o médico gritou lá de dentro, chamando pela recepcionista.

— Sim, doutor, já estou indo.

Em seguida Yueh se levantou do assento e seguiu com os olhos Wang desaparecer nos corredores da clínica. Suas pernas se flexionavam como se quisesse também entrar para a zona restrita. Titubeou um pouco, mas deu meia volta e resolver sentar na cadeira novamente, balançando as pernas ao ar.

Um estrondo e tudo balançou. A janela vibrou como se fosse quebrar, as partes metálicas da cadeira emitiram um ruído agudo, as lâmpadas piscaram brevemente. Yueh deu um salto da cadeira, assustada, enquanto os demais olhavam ao redor, perplexos. Era mais um míssel, e dessa vez havia caído bem perto da clínica. Como havia treinado na escola, correu para debaixo da mesa da recepcionista e encobriu a cabeça. As sirenes agora ecoavam dentro de seus ouvidos, um ruído fantasmagórico e assustador.

Não havia nada de importante naquela pacata vila para ser alvo de um ataque. A base militar era próxima mas não era extremamente próxima, e estavam longe de onde ficavam os sistemas antiaéreos e outras instalações militares. Por qual motivo eram alvo dessa guerra sem sentido ninguém sabia explicar.

Mas nada mudava o fato que agora estavam envolvidos nesse conflito. A qualquer momento alguma bomba poderia cair sobre suas cabeças, em algum lugar, sem que pudessem se proteger. Os poucos habitantes civis que restavam no arquipélago finalmente percebiam o peso de terem escolhido ficar naquele lugar. A guerra era deles também.

Quase imperceptíveis sob os barulhos das sirenes, as pessoas que estavam na clínica escutavam outras explosões. Algumas mais tênues e distantes, outras mais intensas e próximas. Não sabiam se eram o sistema antimísseis funcionando como deveriam ou se os ataques estavam atingindo o solo. Ninguém sabia de nada. O senhor que tinha desligado o celular pouco antes de sentir a clínica vibrar se levantou e saiu apressado da clínica, olhando para o céu. Mesmo sendo extremamente perigoso, estava decidido a voltar para casa e encontrar com sua esposa. Restando somente Jiang, Li e Yueh, a criança ainda sob a mesa.

Jiang e Li continuavam juntos, assustados, mas imóveis. Porém, estavam imersos ainda na dor de perder Huang que faziam pouco caso com os estrondos da guerra. Mais ainda, Li pensava que ela morresse ali não fazia muita diferença mais. Não havia mais uma casa para onde voltar.

Tsu-ching apareceu na recepção e olhou ao redor.

— Meu Deus, Yueh está no mercado! — murmurou ao não achar sua filha na sala. Escutando a voz de sua mãe, Yueh gritou debaixo da mesa.

— Mãe, estou aqui!

A menina surgiu, para o alívio de sua mãe. Ela então começou a correr ao seu encontro, tentando abraçá-la, mas a médica esquivou.

— Não me toque por favor — disse com rapidez.

Yueh arregalou os olhos. Não tinha percebido que o jaleco estava vermelho e que sua mãe ainda estava com luvas cirúrgicas recobertas de sangue. Logo após o som da explosão, Tsu-ching havia perguntado a seu marido Wu onde que sua filha estava. Quando ele respondeu que a havia deixado no mercadinho, a médica se desesperou imaginando o mercado como alvo e saiu correndo sem nem mesmo retirar o jaleco ou as luvas recobertas de sangue.

— Mas, você está bem? — Tsu-ching perguntou.

— Sim…

A garota respondeu com o olhar baixo e voz levemente trêmula, não parecendo muito assertiva. Sua mãe queria lhe dar um abraço mas não podia. As sirenes continuavam a ecoar. A atmosfera era opressiva.

O temor de Yueh de não encontrar seus pais era muito maior que o choque de ter visto a vítima desfigurada de guerra. Certamente, aquela imagem estaria eternamente gravada em sua mente, para seu horror e pesadelos futuros. Mas finalmente ter encontrando sua mãe depois que a primeira sirene tocou acalmou seu coração que por alguns momentos esqueceu o que tinha visto.

— Quero ficar aqui, mãe. Estou com medo.

— Pode ficar — respondeu insincera, ao perceber que o chão pintado em vermelho e as marcas de sapatos impressas no líquido vermelho. Queria limpar logo aqueles fluidos humanos, mas estava ainda cuidando do morto — Vamos ficar juntas. Mas preciso voltar.

O cheiro metálico flutuava no ar, dando uma sensação horrível. Sua vida como médica era relativamente pacata, cuidando mais de doenças do que de acidentes, e nunca havia visto de perto aquele tipo de dilaceração. Então, disse a Yueh:

— Fica no meu consultório até Wang lavar essa sala. Hoje é exceção.

— Tudo bem, mãe.

A menina acompanhou a mãe até seu consultório, que apontou para a sala correta evitando tocar em qualquer coisa. Na pequena sala, havia uma maca de atendimento em uma das paredes, um armário de madeira fechado, um outro armário com portas de vidro escrito “medicação”, uma mesa com um computador em cima e alguns papéis, pôsteres e avisos públicos colados em um quadro de cortiça e a janela do lado oposto à porta, detrás da mesa, iluminando o ambiente daquele dia infernal de verão. O ar condicionado estava quase no máximo, o que fez com que Yueh estremecesse e sentisse frio assim que entrou no consultório.

— Fica aí até eu voltar, promete?

— Prometo.

Sua mãe saiu da sala. A garota andou até atrás da mesa e sentou na cadeira da médica. Pegou uma caneta do porta-canetas e percebeu que sua mão estava tremendo. Observou os dedos tremulantes numa mistura de apreensão devido ao dia horripilante ou ao frio extremo da sala. Soltou a caneta e olhou para a porta, imaginando por um momento que algum paciente entraria por ela e a doutora Yueh escutaria os sintomas, simulando digitar no computador o que o paciente dizia. Então, observou o armário de remédios e fantasiou receitando algum medicamento daquele armário, e no final o paciente agradeceria a doutora Yueh por tê-lo feito se sentir melhor.

As sirenes estavam cada vez mais ensurdecedoras.

Apesar da fantasia, Yueh tinha apenas 10 anos de idade. Nunca tinha expressado que queria ser médica quando crescesse, diferente de algum dos seus colegas de escola, que sonhavam abertamente com serem importantes médicos que curavam todas as doenças e consertavam todos os ossos quebrados. Seus pais, o médico Hsing Yang-wu e a médica Hsing Tsu-ching, desejavam naturalmente que Hsing Yueh também seguisse a carreira de medicina, embora nunca fossem de forçar essa carreira na criança. Ela ainda teria muito tempo pra pensar, imaginavam, e naturalmente escolheria o mesmo caminho deles, concluíram. Por morarem relativamente isolados em Kinmen longe da ilha principal sabiam que em algum momento Yueh teria que partir para seguir os estudos superiores, e estavam guardando dinheiro para quando isso acontecesse os dois também pudessem se mudar junto a ela. Mas isso era a conversa para um futuro que nunca se realizou.

Nem as sirenes nem as explosões deram trégua. Yueh sabia que cada estrondo era alguém que morria tão machucado quanto aquele homem que tinha visto minutos atrás. Fechou os olhos tentando se esquivar da memória sanguinolenta mas era impossível, a cada barulho aquela imagem retornava. A face distorcida, amassada, os olhos prestes a caírem, os ossos do crânio aparentes, massas roxas e inchadas escorrendo sangue. Abriu as pálpebras, agora seus próprios olhos pareciam querer saltar das órbitas, o ar estava difícil de puxar, se sentia sufocada pela atmosfera que cheirava a ferro. A plenos pulmões deu um grito tão potente e estridente que era possível que as paredes da clínica foram estremecidas novamente. O grito de uma criança ao encontrar de frente, pela primeira vez, os horrores da guerra.

Tsu-ching escutou claramente. Era um pedido de ajuda de sua filha. Apressou em remover as luvas cobertas de sangue e o jaleco manchado, e foi até uma pia na sala de necrotério improvisado, lavando as mãos como se tivesse a destreza de quem fazia uma dúzia de cirurgias por dia. Seu instinto de mãe era a única coisa que a movia naquele momento, e justamente por isso não atreveria a tocar em sua filha com algum resquício de material infectante.

— Deixa que eu vejo Yueh, cuide de tudo daqui.

Yang-wu assentiu, enquanto preenchia alguns documentos no computador relativos ao óbito que havia registrado. Iria tirar algumas fotografias para auxiliar nos trâmites legais mas não podia fazer muita coisa além disso, pois não era legista. Já havia contactado a polícia e a autoridade local registrando o incidente, e responderam que logo estariam no local. Mas depois de as explosões continuarem e sabendo que um ataque de grande escala havia começado, ele duvidava que veria o rosto de alguma autoridade logo.

A médica surgiu a porta de seu consultório, vendo que Wang havia chegado antes e segurava a mão de Yueh, tentando acalmá-la sem sucesso. A criança continuava gritando sem parar, sem cessar, abafando o barulho das sirenes. A mãe aproximou de Yueh, Wang se afastou, e pegou a filha no colo sussurrando em seu ouvido.

— Tá tudo bem, tá tudo bem. Eu estou aqui Yueh, olha pra mim.

A criança continuava gritando, ignorando as súplicas de sua mãe.

— Yueh, por favor, me responde Yueh!

Nada. Seus tímpanos pareciam estourar pela intensidade do grito desesperado da menina, que olhava fixo para o além, revivendo a mesma cena múltiplas vezes. A médica estava perdida, sem entender como que há poucos minutos atrás Yueh parecia ter se recuperado do choque inicial.

— Yueh, responde!

Chacolhou a menina, sua cabeça indo e voltando como um boneco de pano, surtindo efeito suficiente para que ela voltasse a seus sentidos. O grito desesperado e dolorido aos poucos, aos poucos, dava espaço a um choro contínuo mas menos estridente, olhando para o rosto de sua mãe a poucos centímetros. Então, envolveu em um abraço o pescoço de Tsu-ching e o calor maternal a envolveu, fazendo com que seu pesado coração se acalmasse um pouco.

— Tá tudo bem, Yueh, tô aqui. Está tudo bem…

Wang observou tudo, perplexa, e ao perceber que a criança havia se acalmado no colo da mãe, deixou a sala para iniciar a limpeza da entrada da clínica.

Mesmo que ainda derrubasse lágrimas, Yueh sentiu paz. Mesmo que as bombas caíssem ao fundo, Yueh sentiu segurança. Era só isso que queria, ficar junto de seus pais. Um longo, apertado e eterno abraço. Não se lembrava a última vez que tinha sido pega no colo, afinal, já eram bem crescida e pesada, e as colegas da escola provavelmente tirariam sarro se soubessem que estava sendo tratada como um bebê. Mas que seja, que seja, pensou, nada mais importava.

Nada mais. Fechou os olhos. Abraçou ainda mais forte sua mãe. Paz.

Subitamente, tudo ficou gelado novamente. As sirenes cessaram.

Foi a última coisa que Yueh se lembrou quando seu mundo e a pequena clínica do casal Hsing veio abaixo.





Este conto é um spin-off da série Garota de Marte.