Os dois já estavam no limite da exaustão enquanto corriam pelos longos corredores de apartamentos do complexo residencial Belo Futuro na região norte da cidade. O horizonte já apresentava seus característicos tons azulados escuros e aquele vento de final de tarde que entrava pelas poucas janelas fazia seus pelos se eriçarem. A cidade já estava toda iluminada artificialmente, e aquela região da cidade era conhecido por ser umas das mais perigosas. Ninguém iria percebê-los correndo, pois muitas outras coisas absurdas ocorriam diariamente naquele local. As lâmpadas de led dos corredores davam um tom azulado rígido para o ambiente, refletindo nas paredes sujas e mal-rebocadas, e sendo absorvidas pelas portas negras de madeira envelhecida. O objetivo deles havia acabado de virar em um corredor à direita, ainda mancando e com sua pistola de dispersão já na última munição. Os dois não esperavam que o alvo reagisse a aquilo que seria mais um dia comum de trabalho, e embora o ombro dela houvesse sido ferido por uma daqueles projéteis de dispersão, sabia que era apenas uma outra cicatriz que ganharia, assim como tantas as outras que já possuía. Sua arma calibre .52 de compressão ainda estava suficientemente carregada para eliminar talvez uns 10 alvos. Ele já estava com as pernas doloridas, embora já estivesse acostumado com perseguições, principalmente após uma torção no tornozelo devido a um passo num buraco imprevisto no asfalto. Carregava a mesma arma calibre .52 de compressão, mas a dele sobravam poucas munições. “Dia merda de trabalho”, pensava.
Eles se esforçavam demais para fazer o trabalho, pois não queriam piorar o péssimo índice de 9% de falhas em suas missões. Estavam a ponto de serem expelidos da “empresa”, e com certeza se falhassem mais uma vez perderiam não só o pagamento, bem como as armas e o local onde moravam. Era tudo interligado, vida pessoal e profissional, mas era o que garantia a sobrevivência deles.
O alvo tinha saído de vista após dobrar o corredor. Já amaldiçoando o alvo, o prefeito e o presidente, repararam numa placa afixada na parede indicando o layout do andar. O layout serviria como rotas de fuga em caso de incêndio, mas acabou sendo um facilitador em encurralar o inimigo. O tempo perdido analisando a planta do décimo andar teria que ser recompensado pela eliminação do inimigo.
— Volta e vire à esquerda, eu vou para a direita — ela disse.
Ambos se separaram a partir daquele ponto. Ela avançou pelo mesmo caminho que o alvo prosseguiu. Ele retornou para virar no próximo corredor à esquerda. O objetivo era tão simples e claro: encurralar o alvo num corredor paralelo, onde ele não teria mais saída. O problema é que os corredores eram longos, longos o suficiente para comportar todas as 100 unidades de apartamentos daquele andar. Nada garantiria que o alvo não teria achado uma saída antes.
Ela deu praticamente um boost final, para esgotar totalmente suas energias. Virou à direita e não viu nada. Só portas e mais portas de apartamentos, mas lembrando do layout, sabia que após muitas portas um corredor à direita apareceria. Ele, indo pelo caminho contrário, fez a rota inversa equivalente: após dobrar à esquerda, portas e mais portas até um corredor à esquerda. Os dois iriam se encontrar de frente para o outro, em cada canto do corredor, e o objetivo iria dar seu último mijo nas calças, ao menos era isso que pensavam.
Ela viu o alvo no corredor planejado. Ele ainda não havia aparecido, presumivelmente pelo pé dolorido. Ela não podia atirar no alvo, pois ele estava longe e se errasse atingiria ele que apareceria pelo outro lado. O alvo continuou a fugir em frente e ela mirava atenciosamente. Ele logo apareceu na outra extremidade apontando a arma para o objetivo. O alvo percebeu que não havia mais nada o que fazer e rapidamente pôs as mãos para o alto.
— Eu me rendo!
O objetivo se ajoelhou espontaneamente, sem largar a arma que apontava para cima. Ele apontou para o alvo e ordenou que soltasse sua arma.
— Solte essa droga!
— Eu já disse que me rendo!
— Solte essa arma!
— Eu já disse que…
Mal terminou de falar a frase e ele não titubeou: apontou para o braço do homem e deu um único disparo. O projétil de compressão fez o seu serviço: logo que atingiu a carne do indivíduo, a bala se expandiu de forma violenta radialmente, literalmente comprimindo qualquer material que encontrou em seu raio de ação. Seus músculos eram rompidos enquanto o rádio e a ulna eram estraçalhados logo depois do pulso. Imediatamente o sangue jorrava pelo chão e parede, formando um rastro respingado. A arma caiu no chão e agora parte do seu braço estava dependurada só por um pedaço de pele e algumas fibras musculares. O barulho de estampido característico do projétil ecoou até o final do corredor onde ela estava e ela correu até onde o alvo berrava de dor. Enquanto ele ainda apontava a arma para o objetivo, ela sabia o que fazer: revistá-lo até encontrar o que eles estavam procurando: um cartão com chip com o número do apartamento escrito: apartamento número 1050. O alvo havia corrido inutilmente para o corredor onde seu apartamento se localizava, não mais que umas 10 portas adiante. Ele ainda gritava de dor, e ela puxava-o pelo chão até o 1050 enquanto ele não tirava o alvo da mira de sua arma.
A porta do 1050 se abriu, a porta do 1050 se fechou. As paredes sujas, mal-pintadas, com resquícios de cola do pequeno apartamento davam um ambiente decadente e hostil. A cozinha e quarto eram praticamente interligados, com apenas um balcão separando-os. Num canto, uma cama desarrumada, e próximo, duas telas conectadas a um pequeno computador estavam ligados, pedindo que inserisse senha ou biometria. Uma lâmpada amarela iluminava o ambiente e uma cortina corta-luz estava fechada. O chão estava inundado com lixo de embalagens de comida e bebidas, e papéis estavam jogados numa pequena mesa baixa. A porta fora trancada e agora uma poça de sangue se formava onde o alvo estava.
— O que querem de mim? — dizia o objetivo, implorando pela vida.
— O drive! Diga onde está o drive? — ele perguntava.
— Eu não sei do que está falando, não!
— O flash drive! Nós sabemos!
— Eu não sei de nada, por favor, eu imploro.
Ela sabia que não teria muito tempo até que ou o alvo morresse de hemorragia ou que curiosos ou a polícia chegasse. Começou a revistar ao redor do computador, no meio de todo o lixo que estava jogado, e em uma caixa cheia de coisas de informática. Dentro dela, cartões de memória, memórias, projetor portátil, microcâmeras, cabos e até uma pequena televisão flexível. Mas nada de flash drives.
— Tenho mais projéteis — ela disse apontando para a arma —. Posso usar no outro braço.
— Eu já disse que não sei que flash drive. Me soltem, por favor, digo, por favor!
Ele e ela se entreolharam. Ele se afastou um pouco do objetivo que estava no chão, e ela apontou sua arma para o outro braço.
— Não, por favor! — o alvo implorava em prantos.
— Três — ela começou a contar —, dois, um…
O gatilho começou a ser pressionado e o alvo ainda se recusava a responder apropriadamente. “Que merda de dia”, ela pensou. O gatilho se moveu mais um pouco e o objetivo percebeu que ele ia sofrer mais. Logo que pensou nisso, resolveu ceder:
— Eu digo!
Ela já havia a apertado o suficiente para não conseguir voltar mais. Ela sentiu o mecanismo da arma fazendo o movimento necessário para atirar e no reflexo desviou a mira do braço para cima. O projétil foi atirado, fazendo um rombo na parede de concreto logo atrás do alvo. O objetivo arregalou os olhos no susto e tremia.
— Eu digo! No pé da cama! Debaixo do pé da cama!
— Qual pé? — ela perguntou.
— O da fr-fr-ente, drireita! — ele respondia gaguejando com a pronúncia comprometida.
Ela foi verificar a informação. Se aproximou do pé e começou a observar de perto. Não tinha nada de especial naquele pedaço de madeira e moveu a cama procurando algum compartimento no chão. Nada.
— Onde está porra! — ela estava furiosa.
— Le-le-vanta! Embaixo!
Com um mão elevou a cama alguns centímetros no ar, pôs sua arma no chão e passou a outra mão pela superfície do pé. Sentiu uma concavidade e uma tampa, e o puxou. O drive caiu no chão sujo, ela o pegou e soltou a cama. Mostrou o drive para ele, que ainda mantinha o objetivo na mira. Ela recolheu sua arma, caminhou até ele, e foram em direção a porta, tentando não pisar nas poças de sangue. O alvo olhava para eles assustado, mas pensava que logo estaria salvo.
Pensava.
Antes de ele abrir a porta, ela levantou a arma na direção do alvo e procurou mirar a cabeça. O alvo não entendia o motivo, o porquê de aquilo estar acontecendo.
— Por que isso? — o alvo não acreditava.
— Não fomos pagos só para recuperar o drive.
Ela apertou o gatilho e projétil se alojou dentro de sua cabeça. Milissegundos depois, mas tempo suficiente para ambos desviarem o olhar do alvo, o projétil se expandiu e comprimiu seu cérebro. Seus olhos ejetaram alguns centímetros, seu crânio expandiu e sangue jorrou por todos os orifícios da cabeça.
Os dois desceram o mais rápido que puderam, mesmo exaustos, em direção ao térreo. Algum tempo depois, a polícia chegaria e eles queriam estar bem longe.
No dia seguinte, ele tentava entender aqueles complicados conceitos de eletromagnetismo que estavam sendo passados, enquanto ela e parte da sala cochilavam em cima das mesas virtuais. Embora a monotonia da voz do professor era insuportável, ele era um dos poucos que conseguia prestar atenção. Pelo menos, com o pagamento pelo serviço do dia anterior, estariam garantidos por mais algum tempo com comida e casa para morar, além de diminuir para em torno 8,5% a taxa de falhas. E para os irmãos, a vida cotidiana seguiria assim, durante o dia estariam estudando ou cochilando durante as aulas, tentando aprender mais coisas dentro daquela sociedade decadente e quase distópica que viviam e de noite estariam trabalhando para assegurar suas vidas. Mesmo que para isso tivessem que tirar outras vidas em troca…