Jonatan perambulava solitariamente pelas ruas sujas do centro da cidade, já com cabeça um pouco entorpecida de etanol e a visão ligeiramente fora de controle. Quem visse por fora não repararia que ele acabara de sair da terceira instituição etílica noturna da região, plenamente satisfeito do sabor açucarado do último drink e confiante na resistência química de seu fígado, seu bem mais precioso, afinal. Por que Jonatan estaria nessa condição, sozinho na noite de fina chuva que regava os musgos que nasciam entre os concretos? Era nada menos que o dia de seu aniversário (parabéns Jonatan!), que por motivos de força maior completamente impediu de ele convidar seus amigos para saírem juntos. Os motivos de força maior incluem sua (ex-)namorada ter quebrado o relacionamento um dia antes, seu celular ter escorregado e caído diretamente na privada de banheiro público, que ele se recusou meter a mão para recuperar e ter recebido a carta de aviso prévio da empresa. Mais um dia normal para o pobre cidadão urbano, mas dizem por aí que sem pressão não se faz um diamente, não é mesmo?

Estamos desviando do assunto. Isso nos leva a atual condição de Jonatan e sua capacidade mental ligeiramente etilicamente inebriada que andava sozinho pela noite de fina chuva no centro da cidade. Felizmente, ele estava com tão pouca coisa nos bolsos que um eventual bandido teria compaixão durante um assalto, então não se intimidou por passar entre as ruas mais escuras e vizinhanças mais suspeitas da região. Jonatan negaria esse fato depois, mas lhe ofereceram algumas moedas ao confundirem ele com um morador de rua… Enfim, eis que de tanto perambular, se deparou com uma viela estreita espremida entre dois prédios já decadentes. Umas latas de lixo abertas emitiam um cheiro horrível de carniça, uma lâmpada defeituosa precariamente instalada logo acima piscava, iluminando brevemente a viela em lapsos de escuridão. Jonatan misteriosamente se sentiu atraído por aquela paisagem, e se bem como contam os filmes de terror, as pessoas curiosas são as primeiras a morrer… Mas o jovem rapaz não se intimidou. Seu paganismo agora se pagava em coragem, então estufou o peito e adentrou a viela, expulsando as baratas com os pés. Virou uma direita para um outro corredor escuro e imundo, e então uma esquerda. Uma luz misteriosa partindo de alguma janela iluminava a viela sem saída. Abafadas vozes pareciam vir daquele lugar, e se sentindo atraído por aquele resquício de civilização, sem se dar conta andou alguns passos até o lugar.

Se encontrou diante de uma porta de madeira entre duas janelas que emitiam uma luz amarelada. Em cima da porta, uma placa entalhada em madeira com dizeres em caracteres não familiares, que para ele poderiam ser tanto chinês quanto árabe. Já um aviso colado em papel logo embaixo, já derretido pela água, lia-se com alguma dificuldade as únicas palavras que entendia:

NO FOREIGNERS ¹

“Ufa”, ele pensou, a concluir mentalmente que era cidadão do próprio país que estava, logo, não poderia ser estrangeiro no país que era cidadão, já que a placa estava no país onde ele era cidadão. Menos mal, ele estava livre para adentrar o misterioso recinto.

A porta estava trancada. Forçou um pouco a maçaneta o que prontamente provocou as vozes a ficarem em silêncio. Olhou para o lado e viu um botão que parecia uma campainha. Acionou o dispositivo e esperou alguns momentos. “Será que já está fechado?”, pensou, mas logo varreu da cabeça a triste conclusão, já que não era nem meia-noite de um final de sexta-feira. Sem resposta, tocou a campainha novamente. Ficou estático diante da porta, esperando alguém atendê-lo. Um cheiro de carne assada agora invadia suas narinas que tremularam de satisfação, o aroma temperado fazia sua barriga (que necessitava de uma austeridade bariátrica, por dizer) roncar em ânsia para o desjejum, afinal, só agora ele lembrava que estava bebendo há um bom tempo sem colocar nada não alcoólico no estômago. Para um bom bebedor, meia coxinha basta.

Estava ficando impaciente, levantando os calcanhares enquanto esperava e ameaçou mentalmente de colocar 1 estrela no Google caso não fosse atendido logo (depois lembrou que não tinha mais celular e abandonou a ideia). Olhava para os lados, para cima e para baixo, e numa última tentativa acionou a campainha 3 vezes seguidas, por que não? E não é que ouviu passos chegando à porta, a porta sendo destrancada e um homem apareceu por detrás dela, revelando sua face oriental.

(Alguma coisa dita em outra língua).

Quê? Jonatan não entendeu nada, mas o gesto com a mão era universal: entre. O rapaz não titubeou e saltou para dentro do lugar, mas mesmo que estivesse um pouco bêbado imediatamente sentiu algo que lhe deixou desconfortável: todos (todos!) olhavam para ele indiscretamente, entre confusos, curiosos e suspeitosos. O salão tinha algumas mesas cobertas de copos de bebidas e comidas de espeto, cujos clientes sentados paravam o que faziam e observavam Jonatan ali na entrada. Um pouco mais ao fundo, um balcão de bar feito de madeira, e logo atrás, uma parede iluminada com leds azulados e avermelhados revelando uma centena de garrafas de bebidas de diversas marcas, tamanhos e sabores. Um atendente detrás do balcão enxugava com um pano sujo um copo de vidro, e olhando diretamente para Jonatan, amigavelmente sorriu e acenou, como se o chamasse. O homem que havia atendido a porta percebeu o aceno e se encarregou de acompanhar o rapaz até o balcão. Todos os olhos acompanhavam os passos de Jonatan, como se ele fosse um ser estranho e alienígena.

Assim que o rapaz se sentou, o atendente gritou algo nesta outra língua em direção ao salão, e todos que estavam paralisados pela estranha cena aos poucos voltaram a conversar entre si e a encherem a cara. Provavelmente ele havia gritado um “não é da sua conta”, mas o exato significado fica a critério do leitor.

Uma pequena bandeira de fundo branco com um yin yang vermelho e azul mostrava claramente para Jonatan o que era aquele idioma ininteligível.

Sem um celular para traduzir o que queria, Jonatan viu uns caras mal-encarados comendo um espeto (que parecia) de frango em uma das mesas ao lado. Apontou o dedo para o espeto e pediu o mesmo, falando em sua língua nativa, obviamente. E também, como não poderia deixar de ser, pediu o menu de bebidas. Ou tentou, pelo menos.

— Você tem o menu de bebidas?

— Menu bebidas? — o atendente perguntou em um sotaque bem carregado.

— Isso, bebidas — entornou sua mão em forma circular em direção à boca, para não deixar dúvidas que queria beber.

O atendente lhe deu um cardápio todo escrito em coreano, que Jonatan prontamente fez cara feia. Sem entender nada, foi direto no que queria:

— Quero a melhor bebida!

— Melhor? Melhor bebida? — coçou a cabeça confuso.

— Isso melhor. Qualquer uma.

— ???.

Percebendo que não iria muito longe a conversa, apontou para uma escolha qualquer do cardápio. Heuristicamente, ele tinha aprendido ao longo da vida que as melhores bebidas são as que não são as mais caras nem as mais baratas. Com um pouco de sorte, qualquer uma com um preço médio poderia ser boa o suficiente para valer o preço, então apontou para um item do cardápio.

— Ok — o atendente assentiu.

O ambiente tocava uma música coreana de estilo antigo, talvez dos anos 70 ou 80, como se fosse um pop da época. As vozes e risadas dos demais clientes inundavam o ambiente em um ruído constante, deixando Jonatan plenamente confortável em seus pensamentos. Era o único sentado ao balcão sem ninguém que conseguisse falar sua língua o acompanhando. Os últimos dias tinham sido bem difíceis e cruéis com ele, mas ao menos ele tinha um apartamento para morar, comida na mesa e não estava envolvido com o crime. Quando o Homem é financeiramente seguro qualquer queda é temporária, já dizia um grande filósofo cujo nome fica à escolha do leitor. Apesar desta sexta-feira ser ligeiramente depressiva para ele, assim que Jonatan acordasse no próximo dia, saberia que o sol estaria lá em cima esperando ele achar um novo emprego, comprar um novo celular e talvez achar uma nova namorada. “Deixemos que o tempo cure”, pensou, enquanto aguardava ansiosamente pelo drink e pelo espetinho de frango (?).

Mas tinha uma pulga atrás da orelha. Não literalmente, Jonatan era bem limpinho, porém se sentia ainda meticulosamente observado. Girou a cabeça ao redor olhando todas as mesas do bar, as caras dos caras eram ligeiramente ameaçadoras e as caras das minas ligeiramente desconfiadas. Estava se sentindo bem deslocado comparado aos bares que normalmente frequentava, um ambiente relativamente pequeno que agora percebia que era coberta por uma fina camada de fumaça dos cigarros acesos. Tinha quase certeza que a lei antifumo ainda estava valendo, mas não era como se um fiscal fosse para um beco daqueles verificar. Apesar de abusar frequentemente do seu fígado, mantinha seu pulmão limpinho caso precisasse dele em alguma emergência.

O atendente colocou a bebida em sua frente. Um líquido esverdeado com um hortelã em cima em uma taça de vidro de formato cônico. Passou diante das narinas sentindo a aroma envolvido de álcool e frutas, o cheiro era anormalmente bom. O primeiro gole lhe fez arregalar os olhos de surpresa inesperada, um adocicado sabor que nunca tinha sentido em outro lugar. Era quase um suco de tão fácil de beber, mas sem perder as característica etílicas que tanto amava. Se fosse um crítico gastronômico já daria 5 estrelas para a bebida, uma joia rara escondida nas vielas escuras da cidade.

Não demorou muito e os espetinhos de frango (?) (no plural mesmo) haviam chegado. Que divino! Que espetacular! A carne de frango (?) derretia em sua boca deliciosamente temperada com um pouco de pimenta e outras especiarias que não conseguia identificar. O sabor salgado preenchia de alegria sua boca. Os legumes que intercalavam os pedaços de frango (?) estavam igualmente marinados e assados, um segredo muito bem guardado nos confins daquele enorme cidade. Se recusava a acreditar que o balcão estava vazio, pois com aquela qualidade deveria haver fila na porta do bar. Ó céus! Depois de uma horrível semana Jonatan finalmente tinha sido agraciado pelo pecado da gula, uma experiência etérea e inesquecível. E as rodelas de cebola. E os vegetais empanados. E o outro drink do menu que não sabia o nome. Que perfeito. Este pequeno bar coreano havia completamente conquistado seu coração na lista de joias escondidas da cidade. Sua aventura errante estava se fechando com chave de ouro naquele noite chuvosa.

Balançou as notas ao alto para pagar a conta quando foi perguntado pelo atendente:

— Que achou? — fazendo uma pokerface.

— Nossa, es-pe-ta-cu-lar! — disse cada sílaba pausadamente. Tanto para dar ênfase, quanto para ter certeza que o atendente entendesse.

O atendente alargou o sorriso. Fez um sinal com as mãos para que Jonatan esperasse, entrou em um porta atrás do balcão, sumiu por um minuto, e voltou trazendo uma caixa de papelão:

— Leva.

Jonatan inclinou a cabeça:

— O que é isso?

— Leva. Sem explicar. Leva.

Neste ponto da aventura, Jonatan já não estava vendo as coisas com estabilidade. Conseguia andar daquele jeito bambo, sua visão não estava estável, seu córtex pré-frontal já não processava com destreza. Esperamos que ele chegue em casa. De alguma forma.

— Toma, dinheiro — o rapaz balançou as notas para pagar a conta. Mas era incapaz de calcular valor naquele ponto.

— Sem dinheiro. — o atendente fez com as mãos para ele ir embora, que não precisava de pagar a conta. Ou pelo menos foi isso que Jonatan entendeu.

O rapaz pegou a caixa, que estava pesada, e agradeceu o atendente. Os poucos clientes que ainda estavam no lugar voltaram a olhar o jovem ocidental indo embora com aquela caixa debaixo do braço andando em passos não muito retos. Teve um pouco de dificuldade ao abrir a porta, pois não percebeu que ela estava trancada. Um dos clientes mal-encarados que sentava próximo a porta destravou para Jonatan, que agradeceu em inglês e saiu de volta na noite de fina chuva entre os prédios decadentes do centro da cidade.

Algum tempo depois, de alguma forma, para alegria de todos, Jonatan havia conseguido chegar em casa. O jovem rapaz teria uma agradável, confortável e prazerosa noite de sono, sem mais incidentes.

Seu verdadeiro problema só começaria no próximo dia.



***



Que dor de cabeça insuportável. Era o que Jonatan estava sentindo ao abrir os olhos diante de um mar de luz que entrava pela janela com a cortina aberta. Seu corpo estava todo torto estirado na cama, como se um bêbado desmaiasse em sono sem se preocupar em trocar de roupa. Pelo menos ele não tinha esquecido de remover os sapatos, então completamente bêbado não estava. Levou a mão à cabeça procurando inutilmente a origem da dor enquanto tentava lembrar de quantos drinks havia tomado na noite anterior. Seis? Nove? Doze? Por algum motivo recordando a contagem de pontos de truco, mas sem chegar a nenhuma conclusão. Ligeiramente cambaleando, fechou a cortina para apaziguar um pouco a claridade e andou em direção à cozinha para pegar um copo de água. A sede era intensa, do nível de caminhar ajoelhado por quarenta dias no Saara. Raramente suas ressacas eram tão fortes assim, mas podemos combinar que seu estado psicológico nos últimos dias estava abaixado do recomendando pela ONU.

Os goles de água desciam refrescando sua garganta, sentindo uma saciedade sem igual. Pegou outro copo de água. E outro. “Deus existe!”, pensou, sem se deixar envergonhar pelo seu ateísmo desde a adolescência. Era a felicidade em forma de H20. Assentou o copo na mesa da cozinha e reparou que logo ao lado estava uma caixa de papelão, do tamanho de uma caixa de cerveja (a critério do leitor o tamanho correto). Não tinha nada escrito nela e uma fita prateada fechava a tampa. Não se lembrava onde que tinha arranjado tal coisa, não recordava de ter comprado nada pela internet, nem lembrava a senha de sua conta da Amazon.

— Alexa, quando foi minha última compra?

Disse para as paredes porque nem Alexa ele tinha. A ressaca estava forte e talvez tivesse perdido alguns neurônios no processo.

Mas não se intimidou pela fita prateada (“só vi em filme essa coisa”, refletiu consigo). Pegou uma faca de pão e rasgou a fita, separou as abas da caixa e se assustou com o conteúdo.

“Se assustou” talvez não seja a expressão mais adequada. “Se surpreendeu” talvez se melhor.

Se surpreendeu com o conteúdo, que refletia reluzentemente e douradamente peças retangulares dispostas em fileiras. Ali tinha 1 milhão de reais em barras de ouro, que vale mais do que dinheiro!

Era o que ele imaginou brevemente ao abrir a caixa, mas o conteúdo era um pouquinho menos impressionante: notas e mais notas de dólares, dispostos em fileiras em montes de 10 mil dólares. Um caixa recheada de dinheiro vivo, fungível, irrastreável. Era a sorte grande da vida dele. Já começou a imaginar o que faria com tanto dinheiro: esfregaria o aviso prévio na cara do chefe e mijaria em sua mesa, depois mandaria um carro de som tocar o dia inteiro o Bonde do Tigrão na janela de sua (ex-)namorada, empacotaria seus bens mais importantes (3 cuecas, 1 calça e 2 camisetas. O celular já tinha ido descarga abaixo) e se mandaria para uma vida de luxo imerso nas belezas naturais de Curaçao, com praia 24 horas por dia tomando água de coco (ou um mojito, pra não perder o costume). Não era sempre que a vida sorri para um homem, e naquele dia a vida estava gargalhando para ele.

Gargalhando tanto para ele que Jonatan começou a gargalhar em voz alta diante da caixa de dólares e mais dólares e mais dólares. Contou 30 pacotes de 10 mil dólares, dando-lhe a milionária quantia de… 300 mil dólares. Ok, nada mal, mas poderia ser um pouqinho mais… E faltou verba para aquelas maletas metálicas de filmes de máfia. De qualquer forma, pôs de lado seus planos mirabolantes de atrapalhar a vida alheia e começou a se perguntar de onde tanta grana tinha vindo. Ele tinha ganhando alguma aposta? Um sorteio? Investimentos em Bitcoin? Estava sendo usado de laranja por algum político? Estavam lhe comprando para esconder um segredo terrível que abalaria até as mais rígidas estruturas da sociedade? E os aliens? Era sobre aliens, com certeza.

Jonatan começou a refazer mentalmente os passos do dia anterior. Tinha saído para o centro da cidade afogar as mágoas em bebidas depois de uma semana terrível. Na noite chuvosa, tinha ido a um bar, mais caro mas com mais opções, depois em outro, mais barato mas de menor qualidade, depois em outro que nem se lembrava do preço ou da qualidade, e então já em estado alcoólico elevado havia se intrometido pelas vielas escuras e perigosas da região central. Lembrou de corredores mal iluminados, uma porta iluminada, umas placas escritas em hebraico, um frango (?) no espeto inigualável, mais um punhado de drinks coloridos. Estava se sentindo pesado ao ir pra casa.

Pesado. Seu braço direito estava doendo. Bingo! O atendente havia lhe agraciado uma recompensa por receber os mais altos elogios dos bebes e comes que havia experimentado em toda sua vida. O barman, possivelmente o dono do recinto, queria que ele divulgasse no Instagram aquele escondido boteco, por isso estava comprando um espaço em seu perfil de zilhares de seguidores.

Jonatan não tinha Instagram. Sua cabeça estava tão confusa que imaginava explicações mirabolantes para os 300 mil dólares. Ninguém dá tanto de dinheiro assim de graça, tinha que haver uma explicação mais ao pé do chão. Tinha que haver. Tinha. E ao chão do seu pé havia sim o motivo daquele dinheiro. Sem perceber enquanto abria a caixa, um papel branco do tamanho de um post-it grande (imagine leitor, apenas imagine) havia caído. Jonatan recolheu o objeto, levou à face e leu:

You have 48 hours. Or death. ²

Vish.

— Agora fodeu! — até o leitor exclamaria em voz alta depois dessa.

48 horas para quê exatamente? Uma fortuna de 300 mil dólares para o que? O rapaz estava perdido, confuso, nervoso e com medo. Tentou pescar no cérebro se havia conversado algo com o atendente além dos pedidos mas não se lembrava. Só faltava ter feito uma promessa enquanto bêbado! Tinha que pensar rápido no que faria.

Levar para a polícia? Isso, leve o dinheiro na delegacia, explique o que aconteceu e tudo vai dar certo. Não, não vai. Tinha visto jornal o suficiente para saber das relações promíscuas (literalmente e figurativamente) da polícia com a máfia, se fosse no lugar errado ia tomar couro na hora, e sair vivo depois dessa talvez não fosse lucro.

Devolver o dinheiro? Tá louco, meu? Assim que pisasse naquele bar de novo ele iria desaparecer para sempre. Se deram todo essa grana para algum “serviço” que ele tinha concordado, a queima de arquivo seria imediata. Se deram por engano, a queima de arquivo seria igualmente imediata, afinal, não pagariam para ver se Jonatan manteria o bico fechado.

Aceitar o destino? Gastaria todo o dinheiro em luxo e prostitutas nas próximas 48 horas, afinal já que iria morrer, melhor morrer aproveitando os prazeres carnais da vida gastando até o último centavo desse dinheiro que provavelmente seria sujo mesmo. Mas Jonatan não era disso, se fosse assim, seria melhor dar o dinheiro para os pais como seguro de vida. Ou não, iria envolvê-los com gente barra pesada e poderia sobrar para eles depois que Jonatan partisse dessa para melhor.

Fugir do país, dar no pé, se esconder nas montanhas? Isso! Bem, Jonatan nem tinha passaporte, então a primeira opção o levaria no máximo ao Paraguai. Porém, poderia discretamente pegar o próximo avião para uma cidade bem distante do outro lado do país, passar um tempo aproveitando a grana e vivendo sob o radar. Depois que as coisas assentassem talvez voltaria e…

Tururu.

Trêmulo, pegou o interfone que estava na parede da cozinha:

— Sim?

— Seu Jonatan, tem um grupo de quatro pessoas aqui na portaria querendo te ver. O nome deles é… um pouco difícil de ler… Son, Park…

— Não conheço nenhum deles — respondeu abruptamente ao porteiro. — Deve ser engano.

— Mas eles disseram seu nome completo, Jonatan Vieira Santos Souza. Aguarda um minuto vocês, por favor, estou falando com…

Jonatan escutou um murmurinho de vozes enquanto o porteiro falava com ele, uma breve discussão, vozes exaltadas e então de repente a ligação caiu. Estava tão confuso que tinha entendido nada, mas era questão de tempo até que a gangue apareceria na porta do seu apartamento. Um chute mequetrefe seria suficiente para quebrar a tranca. Buscou rapidamente um pedaço de papel qualquer em cima da mesa da sala, uma caneta vagabunda e pensou em escrever no papel:

Tava doidão, foi mal

Não, idiota! Se autoxingou em voz alta e corrigiu mentalmente as palavras que escreveria:

Nunca vi esse dinheiro, nunca fui ao bar

Fechou do jeito que pôde a caixa com a fita prateada, levou até a porta, a abriu, deixou a caixa logo no tapete de entrada, colocou o papel em cima e fechou a porta. Seu coração tava palpitando, o suor escorria de seus pés, mãos, testa e axilas, era incapaz de controlar a tremedeira de liquidificador que chacoalhava seus ossos. Basicamente, um pinscher. Sua respiração estava ofegante, ansioso para o que aconteceria nos próximos minutos. Seu olhar não desviava da porta do apartamento, um portal que ele imaginava que logo se abriria para o inferno de kimchi. Se afastou da porta e resolveu se esconder no banheiro, pois embora o nervosismo lhe desse vontade de cagar, era a porta de dentro do apartamento mais resistente (talvez para abafar os sons indesejados, mas nunca saberemos). Estava sem o celular para mandar um adeus para sua mãe querida. Seu laptop estava jogado em algum lugar do seu quarto e se recusava a arriscar (mais) sua vida pra mandar um email.

Não demorou muito para que a campainha tocasse. Pim-pom. O jovem rapaz se sentia tonto dentro do banheiro, imaginando que os últimos momentos antes de sua morte seriam um pouco indecorosos. “Homem morto no banheiro após roubar dinheiro de gangue”. Era a manchete do jornal de amanhã que pairava em sua cabeça.

Pim-pom. Pim-pom. Pim-pom.

O barulho irritante da campainha tocava sem parar. Era óbvio que eles sabiam que Jonatan estava ali, não tinha sido um fantasma a atender o interfone. E então, subitamente, repentinamente, inesperadamente, o ruído característico de porta se abrindo e rangendo como se vê em todos os filmes de suspense. Jonatan, em seu desespero, havia esquecido de trancar a porta! Assim como os personagens mais burros de um filme de terror, sua morte talvez fosse merecida, pensou.

— Jonatan? Queremos conversar.

A voz de um homem soou pelo pequeno apartamento. Jonatan segurava sua respiração fazendo o máximo de silêncio possível. Ouviu os múltiplos passos andando pela sua casa, procurando por ele.

— Não viemos machucar. Só queremos conversar. Já vimos que devolveu o pacote.

Os passos se aproximavam cada vez mais da porta do banheiro. Cada vez mais. Assim como espírito de outro filme de terror (não do filme referido anteriormente), o tuc dos pés no chão o aterrorizava. O deixava atordoado, trêmulo, imóvel. A atmosfera estava fria e pesada. O vento soprava do leste produzindo o som fantasmagórico conforme passava pelas frestas das janelas. As cortinas balançavam momentaneamente revelando a paisagem cinza da cidade do lado de fora. As vozes se aproximavam e cresciam, até que finalmente a maçaneta da porta do banheiro começou a girar, vagarosamente.

Só que desse vez ele tinha trancado a porta. A voz do outro lado então disse em tom sombrio:

— Pode ir com calma. Estaremos esperando na sala ao terminar suas coisas.

Era o fim. Jonatan estaria morto em poucos minutos. Assim que pisasse na sala, iriam conversar por algum tempo e logo depois seu corpo estaria nadando (metaforicamente) no fundo do Rio Tietê. Orou (Jonatan era ateu) para que ao menos sua morte fosse rápida e indolor, e que caso não parasse no fundo do rio, seu corpo estivesse em boas condições para um velório. Não tinha tempo de despedir de sua família nem dos amigos. Repassou em sua mente as coisas boas que tinha feito na vida, e estava plenamente satisfeito com o jeito que havia vivido. A história da sua vida repassou em sua cabeça nos próximos minutos, mas que pareciam horas. Seria uma morte burra, digna de filme B de terror (o referido antes do anterior). Então, finalmente, aceitou o destino.

Vagarosamente andou em direção a sala. Havia 4 homens entre 20 e 30 anos. 2 deles estavam em pé bloqueando a porta do apartamento e outros 2 haviam se sentado no sofá da sala esperando o aparecimento da grande estrela da noite. Melhor, da manhã. Suas faces eram rígidas, fechadas, de poucos amigos. Certamente, ameaçadoras.

— Pode se sentar, Jonatan, é a sua casa — um dos homens que estava no sofá usava óculos escuros de lentes circulares falou. — Primeiro, peço perdão pela indelicadeza pelo modo que viemos hoje.

Jonatan se sentou na poltrona à frente do sofá.

— Também quero pedir desculpas pela falta de modos dos meus amigos. Eles não falam português. Prazer — estendeu a mão —, meu nome é Son.

Jonatan chacoalhando como fusca em ponto morto apertou de qualquer jeito a mão do seu interlocutor.

— Viemos aqui hoje, digamos, agradecer por ter devolvido aquele pacotinho ali — apontou para seu companheiro que segurava a caixa ao seu lado, no sofá. — Ontem você esteve no nosso bar e parece que gostou muito, não é mesmo? — Seu tom de voz era também envolvente, como se hipnotizasse Jonatan.

— Sim… muito bom… Eu, eu… a-a-adorei os dri-dri-dri-drinks — respondeu gaguejando.

— Fiquei sabendo. O barman ficou impressionado com sua sincera crítica, agora me diga — Son curvou-se para frente, apoiando os cotovelos nas pernas, aproximando de Jonatan —, como soube do bar?

— B-b-om, eu esta-tava andan-dan-dando pela região e a-apenas ent-trei nas vielas. Isso, foi só-só isso. Eu esta-tava beben-ben-do-do nos bares do centro — mesmo que tivesse tomando um litro de água naquela manhã, sentia sua garganta mais na seca do que Palmeiras no mundial.

— Ah, é? Que coincidência…

— Foi totalmente uma co-co-incidência, senhor — disse balançando a mão em negação.

— E por que pediu tocou a campanhia 3 vezes, Jonatan?

— Eu pen-pen-sei que não ti-ti-nham ouvido tocar. Sou um pou-co-co impaciente de vez-vez em quan-quando.

— E o que faz da vida, Jonatan? — Son saiu da posição curvada e se inclinou para trás, relaxando os músculos.

Respirou fundo antes de responder a pergunta. Precisa de acalmar um pouco, sua voz era de taquara rachada sem firmeza nenhuma.

— Sou programador — aos poucos a gagueira dava lugar a uma voz mais calma.

— Então deve ganhar bem, não é mesmo?

— Bem, é, é, bom, eu consigo ter esse apartamento pelo menos, e posso gastar nos drinks na ma-madrugada.

— Olha só — Son levou o dedo à boca. — Então parece que você gosta de beber. Então me explique, porque gostou tanto dos nossos drinks?

Neste ponto da conversa, ele havia cometido um grande erro. Um erro fatal. Sem perceber, Son havia se metido no poço sem fim de conhecimento de Jonatan sobre todos os tipos de bebidas existentes e inimagináveis. Como se disparasse um máquina de Goldberg na cabeça de Jonatan, o rapaz começou a explicar como a mistura a nível molecular dos sabores naquele bebida podiam excitar ao mesmo tempo diferentes partes da língua relacionados ao gosto, como que o aroma era recebido pela células olfativas, porque os drinks daquele bar pareciam tão doces mesmo que tivessem tão pouco açúcar, como ele comparava a viscosidade das bebidas em relação às bebidas dos bares anteriores, por que o copo em formato cônico exaltava certas características, como o tempero usado no frango (?) no espeto era compatível com os ingredientes do drink, e foi puxando como fio de um novelo a longa história do desenvolvimento das bebidas alcóolicas desde os tempos antigo até os dias de hoje. A conversa interminável que levou os demais, tirando Son, que pouco entendiam aquele língua estranha, a darem piscadelas com os olhos e cabeça como se quisessem dormir. Mas Son, de forma impressionada, não só escutava atentamente a grande dissertação etílica que Jonatan destilava, como fazia perguntas pertinentes ao processo de fabricação e as características do paladar. Sem perceber, ambos intensamente conversavam até que o colega ao lado que segurava a caixa pareceu cansado o suficiente para dizer algo em coreano para Son. Nem parecia que a raposa tinha vindo caçar no galinheiro.

— Ah, peço perdão Jonatan, passei da hora que deveria estar aqui. Sem dúvidas esta foi a conversa mais intrigante que já tive nos últimos anos. Seu conhecimento de bebidas é gigantesco.

— Eu que agradeço senhor Son, quero pedir desculpas pela confusão. Eu estava tão bêbado que não sabia que a caixa não era para mim — estranhamente, Jonatan se sentia calmo, em paz. O leitor também se sentiria em paz ao saber que ainda estaria vivo.

— Vamos partir. Quero convidá-lo a ir novamente no nosso bar. Vou pessoalmente garantir que incidente semelhante não aconteça novamente. A próxima ida é por conta da casa, free, de graça. Beba o que beber e coma o que comer.

— Ah, claro, com certeza estarei lá — Jonatan provavelmente mentiu. Queria estar longe desses caras.

— Só tenho um pedido.

— Claro, senhor Son — seu coração apertou. Tudo não passava de um último momento de compaixão? Era ali o fim da linha?

— Só não conte do incidente para ninguém. Nem do nosso bar. Sei que é rude, você pode vir, só não traga ninguém.

— Com certeza. Aquele frango (?) temperado é um valioso segredo a ser guardado.

— Você disse frango? — o rosto de Son apareceu confuso, levantando uma das sobrancelhas. A de Jonatan mais ainda a ver a reação inesperada. Antes mesmo de responder com alguma coisa, o colega coreano puxou Son em direção à saída, demonstrando pressa em irem embora.

Son agradeceu na saída. Jonatan fechou a porta e desta vez conferiu três vezes que havia trancado. Sentou no sofá olhando para o horizonte e começou a chorar de alívio quando a grande bigorna metafórica em seu peso havia desaparecido. Que porra é essa que tinha acontecido?



***



Como se tivesse sido enfeitiçado por uma bruxa, Jonatan não resistiu de ir outra vez naquele bar coreano. Desta vez estava sóbrio e com certeza não aceitaria mais nenhuma caixa, mesmo que tivesse 20 trilhões de dólares. Reuniu a coragem, atravessou as escuras vielas até a porta do bar e tocou a campainha.

Ding dong.

Como se já esperassem por ele, a porta abriu quase imediatamente. Do outro lado, o atendente o recebeu dizendo um “bem-vindo” com bastante sotaque e o acompanhou até o balcão, onde o barman enxugava um copo de vidro com um pano sujo. O barman então iniciou uma conversa arriscando um português mais ou menos:

— Quer beber?

— Quero sim, hoje me dá esse — apontou para o cardápio em cima do balcão na terceira bebida da lista. Não lembrava de ter pedido isso da último vez. Não lembrava de muita coisa… — E os espetinhos de frango (?) também.

No frango. Espetinho tem sim.

— Então ok, obrigado — agradeceu desconfiado. O que será que viria dessa vez?

Enquanto esperava os comes e bebes, Son apareceu ao seu lado no balcão, dando tapinhas nas costas e sentando no banco.

— Senhor Son!

— Jonatan. Não sabia que viria tão cedo. Quase tem ninguém aqui ainda.

— Hoje terei que voltar cedo para casa. Arrumei um novo emprego e começo amanhã.

— Parabéns! Para comemorar, hoje então vai ser por conta da casa — e apontou para o atendente, falando algo em coreano.

— Bem, você disse que já seria mesmo então tá tudo certo — disse sorrindo. Não que estivesse totalmente confortável ainda. Sentia medo de Son ainda.

— É verdade. Também sem pacotes de papelão por hoje.

— Combinado.

Assim que as bebidas chegaram (no plural, porque Son obviamente havia pedido a dele), ambos brindaram e tomaram um gole. Quem diria que devido a erro quase mortal Jonatan e Son seriam bons amigos (pelo menos amigos de balcão)?

E assim Jonatan aproveitou a noite, bebendo e comendo tudo por conta da casa. Os dois se entretiam com conversas aleatórias sobre o dia a dia e trocando experiências no quesito alcoólico. A vida estava voltando a dar certo para o rapaz, que aliás já estava de celular novo. Havia descoberto um exótico lugar para saciar o estômago e o fígado bem no coração da cidade, que infelizmente não poderia compartilhar nem com os amigos mais próximos. Ele não perguntou mais do dinheiro nem o que significava aquele bilhete obscuro. Tinha uma vaga ideia mas seria pior se confirmasse exatamente o que ele estava pensado. Mas havia algo que Jonatan tinha colocar para fora, já que estava entalado na garganta desde o dia que Son esteve na casa dele. Assim, não conseguiu resistir ao constrangimento e perguntou:

— Son, algo que sempre quis saber. Este espetinho, é delicioso, mas não é de frango, certo? É de que então?

O rosto de Son ficou sério, sombrio. Ele então se aproximou de Jonatan ao pé da orelha e disse sussurrando:

— Se eu te contar, terei que te matar.

Jonatan arregalou os olhos e virou a taça inteira num gole só depois dessa. Quem diria, são as pequenas coisas que é melhor não sabermos.



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1. Sem estrangeiros
2. Você tem 48 horas. Ou [a] morte