Mais um dia de porre como um outro qualquer. Apesar de muitos terem dito que eu deveria agradecer ao céus (ou ao inferno) ou a sei lá quem for por ter um emprego decente, com um salário razoável e que provavelmente terei uma aposentadoria confortável, estava de saco cheio de ir para aquele local trabalhar, aturar um chefe idiota que não para de dar pitaco em minha orelha e aturar meus “colegas” — se é que posse chamá-los assim, estão mais para semi-desconhecidos-sem-noção-nenhuma-de-espaço-pessoal — fazendo brincadeira infantis como ficar dando tapinhas nas costas e jogando bolinha de papel na minha mesa. Ah, que desperdício de papel! Mas tudo bem, no final do mês eu conseguia guardar dinheiro e viajar para algum lugar sem que ninguém me encha o saco.
Aliás, depois que inventaram o teletransporte viajar também se tornou um saco. Primeiro que as empresas deixaram de serem obrigadas a darem férias: afinal, ninguém mais gasta tempo pra viajar para outro lugar do mundo, não faz sentido dar uma semana para o cara rodar o mundo se ele pode fazer isso em um fim de semana. Segundo que agora todo lugar é facilmente turistável, e praticamente não há nenhum lugar onde não haja um turista turistando fazendo besteira, como mijar nos templos milenares da Mongólia ou jogar garrafa de cerveja do alto do Himalaya. Sim, teletransporte foi uma das maiores revoluções da humanidade, mas pessoas merdas continuam sendo pessoas merdas, isso nunca muda. De qualquer forma, antes de viajar sempre procuro na internet o lugar menos visitado, porque se eu quiser ver gente eu posso continuar no inferno dessa vida.
Bem, arrumei o colarinho da camisa social branca — aliás, roupa social para trabalho é outra coisa que parou no tempo, como se minha roupa me fizesse trabalhar mais e procrastinar menos. Se fosse menos bosta o que faço… — amarrei os sapatos e saí de casa. O teleporto mais próximo ficava a uns 10 minutos de caminhada, e diferente dos meus vizinhos que se vangloriavam e gostavam de exibir seus carrões autônomos caríssimos, às vezes me convidando para uma carona até o teleporto para andar na merda de um carro que eles nem mesmo podem dirigir por fucking 2 minutos, eu preferia ir caminhando. Sem gente para conversar e me atrapalhar, que ótimo. Não que eu odiasse as pessoas automaticamente, mas tive a imensa “sorte” de depois ter me mudado para aquele bairro e conseguido aquele emprego uns 80% das pessoas que conheci eram uns malditos cuzões (ou meu limiar do que defino ser cuzão é muito baixo, sei lá). De qualquer forma, 10 minutos depois tinha chegado no teleporto. Dentro do local, era só entrar em uma das 30 filas que tinha que meu celular indicava, passar minhas coisas pela máquina de raio-x (“raio-x” só por motivos históricos, agora utilizavam uma técnica que conseguia ver tudo o que tá dentro de uma bolsa ou mala por exemplo. Tudo! Mas não era raio-x), passar pelo detector de metal (também, só por motivos históricos, ele detectava qual metal você carregava, além de elementos radioativos, substâncias químicas, etc…), colocar minha mão no escâner de palma e olhar para a câmera de reconhecimento facial. Peguei minhas coisas de volta — apenas uma bolsa com um tablet e um carregador e segui em frente, em direção à câmara de teletransporte número 18.
O conceito de teletransporte é simples, mas a execução dele levou muitos anos para acontecer. Basicamente, a máquina de teletransporte escaneia todos — eu disse todos — os átomos do seu corpo. Melhor, a máquina lê o estado quântico de todas as suas partículas, envia para o local do seu destino e usando campos magnéticos, elétricos, quânticos, enfim, uma infinidade de coisas, pega os átomos de um reservatório e organiza eles de tal forma que a posição relativa dos seus átomos e os estados quânticos de cada partícula sua seja reconstruída. Sim, é uma tecnologia avançada pra caralho, mas funcionou perfeitamente nos últimos 15 anos. A parte ruim da coisa é que por motivos físicos — ou seja, não há tecnologia que derrube isso — a leitura de todos seus estados quânticos faz com que essa informação seja destruída. Em outras palavras, você “morre”, é desintegrado, evaporado — na verdade, seus átomos vão para um reservatório, onde, advinha? Isso mesmo, forma-se novas pessoas. Quando usei a primeira vez achei a experiência bem, digamos, psicodélica. Por uma fração de segundo vi cores bizarras que nunca tinha visto, formas abstratas, flashes de luz, mas do nada a visão do seu redor muda e você está no local de destino. Não tem “tela preta”, “inconsciência”, nem dor nem porra nenhuma. É instantâneo (do ponto de vista da pessoa. Enquanto a pessoa “não existe”, ou seja, durante o transporte dos dados até o outro lugar, não existe consciência para medir tempo. Logo, o tempo entra a destruição da pessoa e a reconstrução dela, para a pessoa, é zero. Sim, é bizarro, mas é assim mesmo). Demorou muito para as pessoas — inclusive eu — confiarem e aceitarem serem teletransportadas. Lembro de grupos religiosos dizendo que quem era teletransportado iria para o inferno, pois a alma ia deixar o corpo, que ia chegar do outro lado morta, ou como um zumbi, mas claramente tudo bullshit. Aliás, com o teletransporte o conceito de alma foi brilhantemente pro brejo, finalmente estava provado que o que faz alguém ser alguém era só os átomos e estados quânticos que a pessoa tinha e pronto. Eu demorei uns 5 anos depois do lançamento do primeiro teleporto a aceitar entrar numa máquina daquelas, da primeira vez é um pouco assustador, mas depois não é mais assustador que andar de avião pela enésima vez. Por falar nisso, nem preciso dizer que viagem de avião agora só como passeio exótico e as empresas aéreas viraram tudo empresas de teletransporte. Com a vantagem que nestes 15 anos de teletransporte nunca houve nenhum caso de gente que morreu durante o “passeio” (tirando os retardados que se matavam depois por acharem que perderam a alma, mas isso é diferente), tirando do avião o título de meio de transporte mais seguro que existe. O máximo que ocorre, como dizem, é ter 1 ou 2 átomos fora do lugar porque a câmara de recepção não é um vácuo perfeito (toda vez que a câmara recebe alguém ela é limpa de qualquer átomo e fica em um vácuo praticamente perfeito, senão é capaz dos átomos da pessoas se ligarem aos átomos do ar e aí sim tem-se um problema) mas é beeem mais seguro que a radiação solar do dia a dia, que de vez em quando ioniza um átomo do DNA do lugar.
Mesmo com teletransporte, filas ainda existiam. Na minha frente havia umas 5 pessoas, e com cada ciclo de envio durando em torno de 1 minuto, tinha que esperar, bem, mais… 10 minutos. Isso porque a cada 10 envios, a máquina recebe outros 10 (o celular mostrava o tempo previsto). Nada mal, não vou chegar no meu trabalho em Londres tão atrasado assim. Abri meu celular para ficar vendo as notícias do dia — embora não tivesse porra nenhuma de coisa interessante — e enquanto lia um retardado idiota filha da puta desconhecido me cutucou no ombro para encher o saco:
— Eu também vi que eles querem abrir uma estação de teletransporte em Marte.
— Você está lendo o meu celular? — perguntei, ranzinza, com cara de cu.
— Desculpe, mas com essa tela grande é bem visível… — eu odiava usar os óculos projetores. Era ridículo ficar olhando pro nada para ler.
— É só não olhar pra cá — disse enquanto observava a cara de mongo daquele cara. Sei lá, devia ter uns 20 anos de idade, mas sua falta de semancol com certeza era mais velha.
— Me desculpe, senhor — “senhor”? Ele acha que sou vovô?
Fiquei quieto. Continuei a ler sobre o teleporto que queriam abrir em Marte. O principal motivo de não ter uma estação no planeta vermelho era que a distância limitava a velocidade que a informação pode trafegar sem que haja erros, e numa situação onde você tem que teletransportar pessoas como essa não era uma boa ideia ter bits invertidos ou acabar chegando o cérebro no lugar do ânus (embora em algumas pessoas eu tenha dificuldade de distinguir os dois lugares). E o quanto de informação que uma pessoa tem em todos seus átomos é grande pra caralho. E também porque não queriam turistas cagando em Marte que nem fazem nas montanhas do Himalaya. De dia. Debaixo do sol. Em público. Eu sei, porque eu já vi.
— Senhor… — o maldito me cutucou no ombro de novo.
— Que? — disse seco.
— Você acha uma boa ideia abrir um teleporto em Marte? — não acredito nisso…
— Não.
— Eu também não.
— Que bom — respondi e cerrei meus punhos, tava com vontade de esmurrar até ver sangue na cara daquele moleque.
— Acho que deveriam parar com essa ideia de teletransporte. Nunca pensou que podem estar fazendo clones de você?
Respirei fundo:
— É proibido em todos os países do mundo. Você sabe disso — por que eu ainda respondia àquele cara?
— Mas podem estar fazendo escondido, já pensou nisso?
— A única vez que fizeram isso puniram o responsável com prisão perpétua e ainda mataram o clone. Após a reconstrução todo dado deve ser apagado. Nada é guardado. Você sabe disso, eu sei disso, e não sei por que diabos você tá conversando comigo nessa merda de fila que não anda sendo que quero ter tempo para ler a merda da notícia antes de ir pro trabalho que não consigo ler porque você não para de falar comigo! — dei o coice no fígado do infeliz, cuja expressão retardada foi de retardado-fale-comigo para retardado-fiquei-ofendido-vou-chorar.
— Seu ignorante! — filho da puta!
— Ignorante é tua mãe, filho da puta!
Que bosta, eu indo pro trabalho, o cara me enchendo o saco, só faltava o que? Uma briga?
Bem, foi isso que aconteceu. O piá de bosta resolveu me empurrar para frente e acabei sem querer empurrando uma mulher que estava à frente de mim na fila. Ela caiu no chão e agora eu era quem tinha ficado com cara de tacho, pois sabia que ela ia botar a culpa em mim. Nem preciso dizer a vergonha que senti quando todos os outros nas filas dos lados olhavam para núcleo da confusão, eu e o filho da puta.
— Me desculpa, esse louco atrás de mim foi quem me… — eu me abaixei para ajudar a mulher se levantar quando o retardado me empurrou com o pé, eu me desequilibrei e caí. Já com os nervos à flor da pele e querendo matar o idiota, me levantei direito para lhe dar um murro na cara. Simples. Com toda minha força, puxei meu braço para trás e tomei momento, mirando no nariz do indivíduo. Neste instante, senti alguém pulando em mim e me agarrando no torso enquanto eu e este caímos em direção ao chão. Era o segurança do local, que juntos com vários outros agora se aglomeravam no que era uma fila. Eu comecei a espanar.
— Este idiota quem me empurrou. Ele quem me empurrou e me chutou. Vocês deviam imobilizar ele!
Pude ver a cara do indivíduo rindo da situação, como se fosse compadre dos seguranças. Ah, eu ia processá-lo e arrancá-lo até a última moeda do retardado. Ia usar as câmeras de segurança como prova, com certeza eu ia. Ele estava fudido em minhas mãos.
Então, neste momento, vi que sua expressão tinha parado de sorrir e agora estava séria. Não havia mais cara de indivíduo retardado, nem de ofendido, nem de prazer ao me ver no chão. Em suas mãos, uma arma de fogo. Mais rápido do que pude acompanhar, ele deu 6 tiros, um em cada segurança que rodeava a fila, inclusive no que agora me agarrava. Neste momento gelei. A arma apontada na minha direção, o barulho do tiro, a sensação de líquido quente escorrendo em meu rosto. Não era mijo: era sangue, da cabeça do segurança. Eu pensei muito que aquela vida de merda agora estava acabada, ia morrer agarrado a um segurança numa fila de teletransporte, que jeito bosta de acabar com a vida. Só ouvi mais tiros, mais gente gritando, barulho de vidro sendo estraçalhado, coisas caindo no chão. Era um ataque, talvez terrorista, talvez um assalto, talvez alguém querendo vingança, sei lá. Tirei o corpo mole do segurança sobre mim e olhei ao redor, as pessoas abaixadas, algumas correndo, gente fortemente armada invadindo o saguão das câmaras de teletransporte ordenando que todos se mantivessem abaixados e quietos. O burburinho e gritos diminuíram, afinal ninguém queria ter os miolos estourados que nem do segurança. Um dos atacantes, assaltantes, terroristas, sei lá o que era, uma mulher, com arma em punho, começou a falar bem alto:
— Olhem para as câmaras, olhem bem, observem bem. Vejam a maldição que jaz nestas máquinas do inferno. Vejam o inferno com seus próprios olhos! — enquanto apontava sua arma em direção às câmaras.
As câmaras eram uma espécie de sala, como se fosse um elevador por dentro, porém de formato esférico metálico por fora e hermeticamente fechadas. Não tinha janelas, mas a porta se abria e fechava automaticamente. Na entrada, um escâner de mão confirmava a identificação do usuário, e só entrava uma pessoa por vez (a quantidade de informação contida em duas ou mais pessoas era demais para o processamento e envio). A porta se fechava, uma contagem regressiva de 5 segundos era exibida numa tela junto com o local de destino, um zumbido de frequência crescente era ouvido, tudo se iluminava e acontecia aquelas coisas psicodélicas. Na chegada, a porta se abria sozinha e você saía. Quem estava do lado de fora podia ouvir o zumbido crescente também, tanto no envio quanto na recepção.
Exatamente na câmara da minha fila, o zumbido de recepção começava a ser ouvido. Numa tela do lado de fora “Recepção em Andamento” estava escrito, e poucos segundos depois “Recepção Concluída” apareceu. A porta então começou a se abrir, e um cheiro anormal adentrava minhas narinas. Lembrava um cheiro de bosta com ferro, misturado com grama cortada. Não consigo descrever melhor. Porém, o que lembro muito bem era a visão daquela coisa, daquele objeto que surgia de dentro da cara, irreconhecível, assustador, surreal, nojento, tenebroso, repulsivo, digno de pena. Uma pessoa. Não, não era uma pessoa. Algo que se assemelhava a uma pessoa, mas não era exatamente uma pessoa. Nem eu que não tinha simpatia com estranhos conseguia não ter compaixão com aquilo.
Seu braço esta fundido ao tórax no meio, como se tivesse levado um soco de si mesmo e o membro atravessasse o esterno, enquanto sua cabeça estava anexada do lado direito da coxa, com o pescoço conectado com o joelho. A outra perna estava invertida, com o pé para cima e parte que se liga ao quadril para baixo. O outro braço então ligava as duas pernas abaixo do meio, com os dedos das mãos conectados na palma. Não havia sangue, não havia carne exposta, não havia ferimentos, não havia hematomas, como se tudo fosse costurado cirurgicamente.
— Observem esta aberração! Isso é o que essas câmaras fazem! Sugam as almas das pessoas, deslocam seus membros, a transformam em monstros! — a mulher prosseguiu com sua demonstração. Ela não tinha um mínimo de compaixão com aquilo.
E então a aberração começou a se mover. Melhor, tentou se mover. As pernas errôneas começaram a tremer, a boca começou a se mexer mas não conseguia falar, os olhos piscavam erraticamente, e os dedos balançavam com se pegasse algo no ar. Aquilo estava vivo, consciente, a expressão de horror em seu rosto era… aterrorizante pra caralho.
— Observem mais! Observem esses seres sem alma, sem corpo! As aberrações que a arrogância do Homem cria! — diversas pessoas começaram a chorar, a soluçar, a vomitar. Eles virando a cara para não verem aquilo, mas diversas pessoas armadas, fortemente armadas, empurravam a cara delas com os canos das armas em direção às câmaras, para que elas fossem obrigadas a admirar as aberrações. No plural, porque outras câmaras começaram a se abrir. E os que saíam delas eram igualmente bizarros. Coisas com metades da cabeça em lugares diferentes do corpo, pernas e braços fundidos e atravessados em outros membros, órgãos internos e tripas do lado de fora formando massas indistinguíveis de pessoas, sendo impossível reconhecer onde cada parte do corpo estava; coisas extravazando sangue por diversos orifícios e rasgos na pele; e até mesmo duas pessoas fundidas ao meio, como se uma tivesse mergulhado no meio da outra até a altura da barriga, se debatendo e gritando de agonia e talvez dor. Pela primeira vez, eu realmente estava acreditando que o inferno existia, não depois da morte, mas antes dela.
Desviei o olhar daquelas imagens e observei ao redor. Havia entre 10 e 15 pessoas armadas por todo o saguão das câmaras, diversas pessoas que presumi serem trabalhadores e seguranças do teleporto mortas no chão. Senti o sangue em meu rosto e comecei a me limpar com a minha tão odiada camisa social branca, manchando de vermelho as mangas. Agora eu tinha um bom motivo para jogar aquela roupa social no lixo.
Os terroristas — vou chamá-los assim, porque o que eles estavam fazendo para mim era terrorismo — se aproximaram das pessoas que estavam no chão e começaram a apontar para cada uma dizendo para se levantarem. Eles não tinham distinção em quem estavam chamando: gente nova, gente velha, mulher, homem, criança. Sem reconhecer um padrão, só tinha que torcer para entre as diversas pessoas ainda vivas que estavam ali eu não tivesse o azar de ser escolhido.
Desnecessário dizer que isso aconteceu.
— Você aí, levanta — que merda, o homem com quem eu tinha brigado agora mandava eu se levantar, apontando sua arma em direção a minha cara. Lógico, óbvio que ele não ia se esquecer de mim. Até parece que fui selecionado de antemão. E claramente, com o cu na mão, eu fiz o que mandaram sem dizer nenhuma palavra. Posso ser bocudo, mas não idiota. Depois que uma pessoa de cada fila estava de pé, alguns terroristas entraram nas câmaras e puxavam para fora aquelas coisas bizarras de gente. As jogaram no meio das pessoas, que se afastavam de desespero e nojo, observando aquelas monstruosidades de mais de perto. Com as câmaras vazias, era óbvio o que ia acontecer em seguida. Só pude repetir mil vezes mexendo os lábios discretamente:
— Fudeu, fudeu, fudeu, fudeu…
Com os canos de suas respectivas armas na região occipital dos respectivos cidadãos, incluindo eu, nos ordenaram para que seguíssemos em frente em direção às câmaras. Eu andava devagar, desviando dos que estavam abaixados no chão e daquela bizarrice humana. Pelo canto do olho, eu pude ver uma mulher duas filas além, acho que em frente à câmara 20, no desespero tentar fugir da mira armada do terrorista. Ela mal tinha dado dois passos correndo para o lado quando vi uma luz saindo da arma de fogo. O terrorista tinha lhe dado um único tiro na cabeça, seu corpo agora caía como uma pedra no chão e o sangue espirrado no piso. Como se nada tivesse acontecido, o filho da puta pegou outra mulher no lugar da teletransportada para outro mundo. Esta, mais inteligente, apenas seguiu a ordem.
Estava na entrada da câmara. Não só eu, como mais umas 30 pessoas nas portas das demais câmaras, o bico da arma pressionando o couro cabeludo. Um momento antes do filho da puta, idiota, retardado do terrorista me empurrar para dentro, ele me disse uma frase que quase me fez quebrar teu nariz e mandá-lo engolir:
— Não é nada pessoal.
Com um chute na bunda que doeu pra cacete, fui empurrado para dentro da câmara. A porta então começou a se fechar, e ele não parava de me apontar a arma, até que a porta fechou totalmente. Claramente, comecei a pensar em um jeito de me matar se eu virasse uma massa de carne indistinta, porém consciente, como aquelas coisas eram. Não tinha nada em minhas mãos que furasse minha jugular, minha bolsa com o tablet estava agora jogado no chão, provavelmente quando o segurança pulou em mim. E mesmo que tivesse, talvez minhas mãos não tivessem nem no lugar certo para conseguir pegá-lo. Estava fudido, ia morrer torturado praticamente, bem queria que meu chefe ou aqueles colegas idiotas e infantis tivessem em meu lugar. Mas tinha que ser eu?
Com a câmara hermeticamente fechada, era difícil ouvir algo do lado de fora, exceto o então zumbido de frequência crescente, indicando que a máquina estava se preparando para me enviar para… onde mesmo? Londres? Não sabia qual era o destino daquele teletransporte. A tela com a contagem regressiva e o local de destino não mostrava para onde eu estava indo. Então, como esperado, os números começaram a decair.
5, 4, 3, 2, 1…
Meu coração já acelerado pulou, disparou, foi para a garganta (metaforicamente, claro). As cores psicodélicas, formatos surreais, flashes de luz, tudo em um instante. Apesar de ter usado o teletransporte várias e várias, esta vez em especial foi a que mais senti medo. Medo de não chegar totalmente do outro lado, de ter meus órgãos remexidos e fundidos, de sentir dor, de não ter coragem de me olhar no espelho. Mas quando a visão ao meu redor voltou de repente ao normal, podendo enxergar as paredes da câmara, no choque comecei a examinar meu corpo inteiro. Estiquei os braços e vi se minhas mãos estavam no lugar certo; se minhas pernas estavam do jeito certo, meus olhos estavam no lugar, se minha orelha estava dos lados de minha cabeça e se minha cabeça estava na altura que sempre estava. Foi então que pensei que os terroristas provavelmente hackearam as máquinas para colocar os átomos no lugar errado na hora de reconstrução. Era conceitualmente possível, embora os engenheiros sempre dissessem que o sistema todo tem uma infinidade de camadas de proteção, para evitar justamente isso. Depois de passado o choque inicial e ter ao menos externamente confirmado que eu ainda era eu com todos os membros no lugar, a porta se abriu.
Uma muvuca desgraçada do lado de fora, um monte de gente chorando e gritando, fazendo ligações, digitando incessantemente em seus celulares. Não parecia haver nenhum terrorista naquele lugar, pode ser que estivessem escondidos no meio da multidão, prontos para atacar novamente. Eu então dei um passo a frente e procurei meu celular no bolso. Ele felizmente estava lá, não tinha caído no meio da confusão. Comecei a procurar por notícias do ocorrido, tentando entender que merda de ataque terrorista ou sei lá o que era. Passava pelos sites de notícias, mas nada havia sido noticiado; também, não fazia nem 10 minutos que tudo tinha acontecido, ia demorar alguma coisa para aparecer. Resolvi dar uma olhada no Twitter — quem diria que essa empresa ainda não tinha falido depois de tudo — e muitos já comentavam dos ataques. Tinha fotos de gente morta, de gente deformada, mas nada pior do que já tinha visto com meus próprios olhos. Eu não podia fazer mais nada ali, as câmaras continuavam a abrir e a aparecer mais gente normal, e só podíamos esperar a chegada da polícia e ambulâncias. Em menos de um minuto, sirenes de carros de polícia eram ouvidos de dentro daquele sagüão, com arquitetura substancialmente diferente da qual eu estava. Diversos homens fortemente armados invadiam o local, passando pelos detectores de metais, disparando com alarmes sonoro e visual todos eles. Um deles subiu na esteira de um raio-x e com um megafone anunciou:
— Mantenham em silêncio, fiquem calmos! Não se movam, iremos auxiliar um por um. Mantenham-se nos lugares que estão!
No meio daquela muvuca não era muito fácil mesmo se mover. As pessoas então se mantinham imóveis (por falta de espaço), e eu ainda estava atrás da multidão pois tinha acabado de sair da câmara de teletransporte. Entretanto, havia algo errado. Não sabia o que era, mas algo estava acontecendo — claro, passar por uma experiência deste tipo é traumatizante — de forma errada. Um sentimento estranho, diferente de ver pessoas deformadas e cabeças estouradas. Foi quando meu celular começou a tocar. Quem estava me ligando era um dos meus vizinhos que esbanjava seu carrão autônomo. Atendi:
— Oi — eu era apenas um no meio daquelas pessoas, ninguém ia perceber eu atendendo o celular.
— Tudo bem com você, cara? — claro, está realmente tudo bem depois de eu ter limpado miolos da minha cara. Mas confesso que fiquei de certa forma comovido com a preocupação do meu vizinho cuzão.
— Estou vivo. Como sabe que eu estava na confusão? — perguntei, já pensando que ele também era um maldito stalker.
— Eu estava duas filas ao lado. Vi você brigando com o terrorista, tentando salvar as pessoas. Muito corajoso de sua parte.
— Obrigado — não queria explicar que a confusão talvez não tinha nada a ver com isso, mas era mais fácil responder com um agradecimento. Mudei de assunto. — Mas como você tá ligando? Você conversando no telefone com os terroristas ainda aí! — meu vizinho parecia querer ganhar o Prêmio Darwin do ano.
— Aí? Você foi embora do teleporto? Não há mais terroristas, depois que vocês entraram na cápsula eles saíram correndo em direção à rua. As notícias dizem que a polícia pegou alguns deles, mas ainda há diversos foragidos.
Era óbvio que tinha ido embora do teleporto, eu fui teletransportado, idiota! Mas até os terroristas irem embora e sair notícia de perseguição e que a polícia pegou alguns deles já havia se passado vários minutos!
— Então quer dizer que eles provocaram uma delayed teletransportation?
— Como assim, não entendi — ele respondeu.
— Não faz muito tempo que cheguei aqui. Como que os terroristas fugiram, a polícia prendeu e saiu na notícia em tão pouco tempo?
— “Cheguei aqui”? Do que está falando? Você entrou e saiu na máquina, ninguém foi teletransportado. Fiquei aliviado, pensei que você ia aparecer todo… bem… deformado que nem aquelas coisas… Perdão.
— Não estou entendendo. Você está dizendo que… — neste momento, ouvi indicativo de ligação sendo desligada. A chamada tinha caído. Tentei ligar para ele de volta, mas meu celular não conseguia completar a chamada. Tentei mandar mensagem para o aquele cuzão, mas a mensagem não conseguia ser enviada. Realmente, algo bizarro estava acontecendo. Porém, não precisava de muito esforço para saber o que estava acontecendo. Merda.
— Formem filas aqui, aqui e aqui. Uma pessoa por vez. Vocês terão suas palmas e faces escaneadas. Depois, serão encaminhados a hospitais para terem sua saúde e corpos checados.
Três enormes filas começaram a se formar, mas na verdade parecia uma só completamente desorganizada. As filas começavam nos detectores de metais de entrada, do lado das máquinas de raio-x, enquanto os policiais — melhor, pareciam policiais — gesticulavam para quem estivesse saindo mostrar sua palma e face. Um equipamento de mão com leitor de palma e uma câmera de reconhecimento facial checava a identidade de cada pessoa. Uma vez ou outra, o agente mandava a pessoa para um outro canto, mas a maioria era ordenada a seguir em direção a saída. A vida tem muitas doses de ironia, e uma delas que é eu tinha dito pro terrorista que quando um clone é produzido no teletransporte ele tem que ser e é sumariamente desintegrado assim que identificado como clone. E para mim parecia muito óbvio que todas aquelas pessoas, inclusive eu, tinham sido duplicadas. Se esse era o objetivo dos terroristas, mostrar ao mundo o quão cruel e desumano o teletransporte era, posso dizer que eles venceram. Logo, logo, iria sair em todo mundo a notícia de um extermínio em massa de duplicatas, pois era praticamente impossível manter um segredo desse tamanho ao envolver tanta gente. Com certeza, muita gente que nem eu conseguiu tempo para conversar com alguém que depois vai reparar que o teletransportado com quem tinha conversado era uma duplicata. Ou posso considerar a duplicata exatamente a pessoa original? E se eu fosse a pessoa original, e quem ficou para trás foi minha duplicata? Qual a porra da diferença entre a duplicata e a pessoa original? Melhor, por acaso existe diferença? Estava suando frio neste momento, não conseguia mais determinar onde eu realmente estava. Só tinha certeza de uma coisa: que eu não queria morrer — ao menos não daquele jeito.
— Formem ordem na fila — o cara no megafone ordenava. — São três filas, aqui, aqui e aqui…
Observando o comportamento das filas, concluí que na hora do escâner de palma e do reconhecimento facial é quando eles conseguiam de alguma forma descobrir quem tinha sido duplicado, e os que estavam sendo desviados para o lado eram as pessoas “verdadeiras”, que não tinham sido clonadas. Uma minoria, pouquíssimos.
Olhei para a esquerda e vi um homem correndo e gritando:
— Somos clones! Atenção, somos clones! Vamos todos morrer! Minha mulher estava conversando com o eu original, nós também estamos no teleporto de origem! Estamos no…
Mal consegui ver, só escutar os barulhos de tiros que um dos policiais descarregava no corpo do sujeito, fazendo jorrar sangue por todos os orifícios de bala enquanto o corpo desabava ao chão.
— Temos um terrorista ao chão, um terrorista ao chão! — o policial acenava e gritava para os demais companheiros perto das máquinas de raio-x, que agora atravessavam a multidão em direção a cena do ocorrido. — Se afastem! Ele pode ter uma bomba! — Ele pedia para os demais que observavam a cena tomarem distância, enquanto mais homens chegavam. As filas que já não eram organizadas estavam tortuosas e irreconhecíveis.
O cara no megafone disse:
— Acabamos de matar um terrorista. Mantenham a calma, todos serão levados aos hospitais o mais depressa possível. Os tiros foram para matar um terrorista…
Observando aquela cena, não conseguia passar pela minha cabeça que aquele homem de cabelos grisalhos, meia idade e rechonchudo, sem porte físico pra porra nenhuma fosse um terrorista. Tudo parecia uma grande atuação, onde nós éramos os figurantes a serem descartados em uma grande catástrofe. Assim, pensei em voltar para a câmara e me teletransportar de volta, mas o comando da máquina nunca fica com o usuário, é a empresa quem controla. Seria impossível eu me mandar de volta.
Merda, merda, fudeu, fudeu, fudeu. Eu estava fudido, ferrado, bem como todos ali em minha volta. Quando pensei que o inferno com os terroristas tinha acabado, agora seria desintegrado por causa de uma merda de lei. Eu e mais um monte de gente, que não tiveram nada a ver com isso, apenas porque em algum momento acharam um absurdo, anti-ético, imoral, problemático ter duas mesmas pessoas no mundo. Ah, eu já odiava aqueles ratos filhos da puta de políticos, todos eles podiam ir pro inferno teletransportados com seus cérebros no rabo e seu cu no lugar da boca, agora eu vou morrer porque ninguém imaginou que alguém algum dia iria ser duplicado à força? Nem fudendo, nem fudendo, eu ia achar um jeito de escapar desse fundo de poço. Foi aí que pensei o óbvio: eu iria tentar provar que eu era o original, a não-duplicata. Não era uma ideia brilhante, mas era a única coisa que tinha, o único fio de esperança. Todo dia eu entrava em uma máquina que me destruía e que me mandava para um outro lugar como se fosse algo tão comum quanto comer, mas hoje eu entraria em uma máquina para ser teletransportado para lugar nenhum, para morrer. Meu coração se acelerou novamente, comecei a tremer, a pensar que era um jeito muito idiota de morrer. Quero dizer, de eu morrer, não daquele que ficou para trás, aquele filho da puta vai continuar vivendo tranquilamente, indo para o mesmo trabalho de merda todo dia, ter que aturar um chefe idiota e colegas retardados, ver os carrões autônomos de seus vizinhos saírem na rua todo dia de manhã, e tendo pesadelos toda noite com aquelas coisas estranhas que surgiram das câmaras. Tudo porque ele é exatamente igual a eu. Justamente por ele ter os mesmos átomos do meu corpo, eu quem iria me fuder. Tenho absoluta certeza que ele estaria rindo da minha desgraça, por ter escapado da morte permanente, mas tendo que morrer recorrentemente todo dia. Desgraçado!
Ok, mantenha a calma. Tentava me concentrar na minha argumentação, na minha péssima habilidade de convencimento. Estava já há uns 20 minutos na fila, quando minha vez tinha chegado. A visão aterrorizante da desintegração inundava minha mente imunda, mas tinha que enfrentar. Passei pelo detector de metais e o policial levantou o equipamento para eu pôr a mão e fazer o reconhecimento de meu rosto. O momento antes de ele levantar o braço para me mostrar a fila foi o pior momento de todos.
— Por ali.
E me apontou para a saída daquele teleporto. Merda.
— Eu sou o original. O verdadeiro.
Ele me olhou sem expressão. Continuei:
— Quem ficou lá trás é minha duplicata, eu sou eu, o original, meu clone ficou no teleporto de onde vim, tenho certeza diss…
— Segue em frente, porra!
Não tinha argumento nenhum que embasasse o que estava dizendo, mas prossegui:
— Posso provar. Foi eu, minha consciência que entrou na câmara e apareceu aqui. O outro que é uma cópia porque ele não sabe de nada sobre aqui — péssimo argumento —, por favor, eu posso provar, eu…
— Porra, eu disse pra você seguir caralho, ou te meto bala! — e fez um sinal para seus companheiros.
— Isso é ilegal! É ilegal! — na verdade não era, mas nem sabia direito o que estava dizendo. Só senti meus braços sendo agarrados enquanto me debatia violentamente tentando me soltar daqueles filhos das putas que literalmente me arrastavam em direção à saída. O sentimento de desespero, de fim de esperança, de aflição tomou conta de minha mente, falava qualquer coisa que saía de minha cabeça. — Vou avisar meus advogados, meu clone vai saber o que aconteceu e vocês serão presos, expulsos da corporação! Isso é crime, é contra os..,
Senti um forte impacto na cabeça e apaguei. Não sei quem me bateu, nem com o que me bateram. Se estes bostas quisessem me desintegrar, que ao menos fizesse enquanto eu estivesse inconsciente. Seria mais fácil.
Mas não. Nosso fim foi pior. Meu fim foi pior.
Escrevo isso de dentro de um cubículo de bosta, uma célula solitária escura com um colchão e uma privada de plástico. Minhas unhas estão sempre cortadas para evitar que eu tente furar minhas artérias, as paredes e a porta são de material macio para que eu não tente me matar dando porradas na cabeça, o chão é igualmente macio pelo mesmo motivo. O colchão é fixo, para evitar que me asfixie. A privada não tem água para evitar que eu me afogue, sendo a vácuo, com sensores por motivos óbvios. Uma câmera no teto me vigia o tempo todo. Não tenho noção de tempo ou dos dias, mas todo dia sou despertado por um som ensurdecedor que me obriga a levantar para participar de alguma “atividade”, que pode ser testar meu limiar de dor, minha capacidade de regeneração de ossos quebrados sob drogas, o quanto meu tímpano estourado pode se regenerar usando nanorrobôs, o quanto de medicamento posso ingerir antes de ter convulsões, o quanto meu tumor gerado por radiação regrediu após a nova substância recheada com nanochips.
Se você está lendo isso, saiba que de algum jeito escapei daquela bosta de cela em direção à morte permanente e de algum jeito consegui escrever essa pequena história da minha vida. Não se preocupe, eu não me importo mais com a morte, pois não vivo mais. Já morri faz tempo, não sei se meses ou anos atrás, desde aquele ataque “terrorista” retardado, estúpido, cruel, desumano. Melhor, acho que não vivo mais desde que comecei a descrever meu cotidiano como “um dia de porre como outro qualquer”. Hoje finalmente vou mandar um foda-se para tudo isso.
Até que aqueles religiosos fanáticos não estavam tão errados assim. O teletransporte realmente sugou minha alma em direção ao inferno. Pensando bem, acho que minha alma já tinha sido sugada bem antes disso.
12/03/2017