O interfone tocou. Do outro lado, o porteiro do condomínio me avisou que havia uma entrega para o “senhor”, e que era para eu descer. Lógico que eu já sabia, o aplicativo no meu celular já indicava que um motoqueiro (ou era bicicleteiro?) estava à espera, pronto para me entregar um suposto suculento lanche. Ao menos já estava preparado e arrumado o suficiente para não parecer um trombadinha, abri a porta do apartamento e apertei o botão do elevador. Eram dois elevadores normalmente, mas naquele dia só um funcionava enquanto o outro estava em manutenção.
A cabine chegou e dei um passo à frente, me assustando com a imagem refletida no espelho (era eu mesmo, óbvio, mas parecia não me reconhecer). A porta se fechou e o elevador com um zunido desceu suavemente, até indicar o número zero no visor. A porta se abriu e comecei a caminhar em rápidos passos em direção a portaria, primeiro porque estava com fome, lógico, e segundo porque a chuva caía fina naquela noite.
Peguei o pacote de papel, cujo interior continha a substância para minha alimentação noturna, e fiz o caminho oposto até a entrada do prédio, onde novamente apertei o botão do elevador, que naquele momento já tinha ido pra outro andar. Por um motivo totalmente aleatório, aproximei meu rosto da frestra gradeada da porta externa do elevador, usado para ver de forma difusa se a eventual cabine tinha realmente chegado no andar. Mas claro, desta vez a cabine tinha ido pra outro lugar, então tudo que trespassava aquela frestra gradeada era a escuridão de dentro pra fora, mas a sombra da minha cabeça iluminada pelo luz do hall se projetava na parede do poço,. Ainda assim, por um motivo totalmente aleatório, como se alguém me forçasse a fazer isso, colei meu rosto na fresta para observar o interior. Um vulto veloz e difuso como uma nuvem cinza escura correu de um lado para o outro do poço e desapareceu do meu campo de visão. Automaticamente saltei pra trás, tropeçando em algum objeto no caminho, sentindo a gravidade me puxar, levando meu corpo ao chão. Meu osso occiptal se chocou com o piso frio, gerando um batuque característico. Ainda deitado, assim que olhei pra cima, vi uma face aterrorizada com olhos esbugalhados em um corpo que vestia um terno escuro e solene olhando fixadamente para mim.
— Ei garoto, você tá bem?
O porteiro me perguntou enquanto se agachava para ver minha situação. A face aterrorizada era do barulho do meu crânio no chão, que embora (eu acho) não tivesse me levado a concussão, me deixou temporariamente tonto. Mais ainda do que já era.
Virei levemente o rosto para o lado e vi o pacote de papel tombado. Meu hambúrguer certamente tinha virado mexido.
— Estou. Eu acho…
Me levantei devagar, aindo meio zonzo com a pancada, mas metade da minha dor era de vergonha de ter se assustado com… o que mesmo?
— Não quis te assustar, eu vim te avisar que o elevador está em manutenção, para usar as escadas, tá.
Ele estendeu a mão pra me ajudar a levantar, mas preferi ficar sentado por vários segundos enquanto meu equilíbrio retornava.
— O elevador, este daí, tá funcionando, eu vim ne-—fui subitamente interrompido pelo porteiro.
— Tá não! Os dois estão em manutenção.
Senti uma grosseria desnecessária da parte dele. Pô, poderia ter avisado com um pouco mais de educação e delicadeza.
— Mas se estava em manutenção então não era pra estar funcionando — instintivamente, respondi em tom semelhante.
— Ah… talvez tenha sido tarde demais.
Oi? O que foi tarde demais? Nem deu tempo de perguntar, ele se levantou e me largou ali sentado, indo em direção a portaria, com os passos apressados. Era plenamente possível que com esta pancada na cabeça meu cérebro tivesse se desfeito e estava imaginando coisas. Mas o vulto no porão…
Não pensei mais nisso. Peguei meu “hambúrguer” (agora chamado de mexido de carne) e abri a porta da escada de emergência. Era somente oito andares — “somente” entre aspas mesmo, meu sedentarismo já assinava o atestado de óbito. Andando normalmente, sem correr nem ser uma lesma, fui subindo em ritmo constante cada andar do prédio, indicado por uma placa fixada em cada porta. Logo em cima da porta, em cada andar, um sensor de movimento fazia com que a iluminação acendesse automaticamente.
Primeiro andar.
Continua.
Segundo andar.
Continua mais um pouco.
Terceiro andar.
Neste ponto, parei para dar a clássica respirada, colocando meu nariz para fora numa pequena janela de ventilação entre os andares. Da janela, que tinha um vidro basculante, era possível ver os prédios da vizinhança, uma rua, e não muito mais que isso. Só fiquei ali tempo suficiente para pegar algum fôlego e tão logo me senti pronto pra continuar a jornada me afastei da janela e continuei subindo.
Quarto an–
Um estrondo metálico, reverberando em eco para cima e para baixo, como se tivesse vida própria. Dei um salto de susto mas desta vez não tropecei nem caí para trás, só a reação fisiológica natural de tremer da base até o último fio da cabeça. Parecia que o vento tinha fechado a janela basculante com força, o que era um tanto… improvável. O quadro da janela era de metal e não era a coisa mais leve do mundo para se mover. Com o coração duplamente palpitando de sedentarismo e do susto, e com a barriga roncando de fome, ignorei novamente o estranho acontecimento e prossegui subindo degrau por degrau.
Quinto andar.
A luz não acendeu. O que iluminava o caminho era uma indistinta luz do andar de baixo, refletida inúmeras vezes pelas paredes que chegavam bem fraca até a porta do quinto andar. Estava sem celular para usar de lanterna porque achei muito inconveniente ter que levar ele para caminhar cinquenta metros até a portaria. Nem bolso eu tinha. Confesso que naquele momento o que eu pensava que era taquicardia de esforço físico se tornou taquicardia por estresse. Eu estava com medo? Olha… Era só um porteiro num dia ruim, uma escada de emergência, uma lâmpada queimada, uma janela que não estava travada. Nada demais, apenas coincidências, coisas do cotidiano que ocorrem o tempo todo, nada especial.
O vulto apareceu de novo.
Um forma indistinta como se fosse fumaça, se moveu mais rápido que o som vindo do andar de cima em direção ao piso debaixo, passando ao meu lado, junto com um vento gelado. Não tinha pé nem cabeça, como um rastro sem forma, um aglomerado de “coisas” translúcidas. De forma instintiva procurei a maçaneta da porta de saída, tateando desesperadamente a superfície corta-fogo, mas não encontrava, não conseguia saber onde ficava o dispositivo. Então, neste momento, segurei meu lanche com todas as forças, as pernas se compararam a de um corredor de cem metros rasos, inalei profundamente para obter oxigênio e finalmente senti a adrenalina no sangue. Disparei, no escuro mesmo, como se alguém estivesse atrás de mim tentando me alcançar, tropeçando pelos degraus e usando de apoio o corrimão que até agora nem tinha tocado. Eu implorava para o que quer que existisse no plano superior que no sexto andar a luz acenderia, certeza disso. Duas luzes queimadas é improvável. Mais um pouco, uma dúzia de degraus, não vejo nada, por favor, acende!
E então.
Senti algo gelado tocar minha mão.
— Aaaaahhhhhhh! — dei um berro. Eu estava louco, tinha tido uma concussão com certeza, estava imaginando coisas! E a escuridão me envolvia, eu tinha medo, muito medo, de virar o rosto e encontrar quem estava ali. O berro ecoava pelas paredes, deixando ainda mais fantasmagórica aquele experiência que, por falta de palavras, sobrenatural.
A luz se acendeu.
À minha direita, quem tocava a minha mão com a temperatura de um freezer e rigidez de um morto era a maçaneta da porta do sexto andar.
Comecei a rir sozinho. Eu finalmente sabia que era tudo coincidência, até mesmo o vulto era imaginação minha, da minha suposta mas não confirmada concussão, ou era apenas efeitos provocado pela escuridão da escada. Minhas pernas estavam bambas, mas ainda tinham forças para continuar subindo, apenas dois lances de escada separava eu do conforto do meu lar.
Me afastei da porta, a lâmpada ainda acesa iluminava os degraus à minha frente, e continuei subindo em ritmo constante. Estava ainda abalado, sem dúvida, mas o alívio cômico da situação cômica que tinha acabado de passar me trouxe um pouco mais de racionalidade e apazigou um pouco meu nível de estresse. Era só seguir, em pouco segundos estaria no meu apartamento, com certeza.
Certo?
No sétimo andar, a luz se acendeu. Fiquei aliviado por haver iluminação, então continuei prosseguindo para o oitavo, o ritmo fixo, as pernas fracas porém ainda com um resquício de energia, a respiração ofegante mas com oxigênio suficiente para poucos degraus.
Assim que virei à esquerda para contornar a parede da escadaria entre o sétimo e oitavo piso, ouvi a porta atrás de mim se abrir. Um rangido metálico ecoava de forma contudente, junto com som de passos abafados como se alguém tivesse usando um salto. Só mais uma coincidência, pensei, um vizinho que por falta do elevador está tomando a escada de emergência.
Ouvi o som da porta se fechando, os passos continuavam e pareciam aumentar, como se tivessem subindo a escadaria e não descendo. Inicialmente achava que era só impressão, mas o barulho ficava cada vez mais próximo, então passei a andar mais rápido, o barulho aumentando e se aproximando, e eu mais rápido ainda, e parecia que sentia o ar se mexer perto de mim, e eu mais rápido ainda, quase correndo, uma rajada de vento gelado passava pelas minhas pernas, degrau por degrau, tirando forças não sei da onde, mais rápido, está próximo de mim, sinto uma respiração ao lado da minha nunca, tem alguém sim, não olhe não olhe não olhe pra trás só pra frente, e continuei subindo e subindo e subindo e subindo e…
Sétimo andar. Certeza que tinha passado pelo sétimo. Absoluta. Impossível. Eu tinha subido, e não descido. Continuei, eu precisava chegar no oitavo, mais dois lances, e havia “algo” atrás de mim, um calafrio percorreu todos meu ossos, do crânio ao dedo do pé, eu estava tremendo e suando quente pelo esforço físico e frio por esta situação inusitada.
A luz se acendeu. Sétimo andar. Não pensei duas vezes, abri a porta do sétimo, vou bater na porta de algum vizinho, pedir ajuda, o que quer que seja, só quero sair desta escada amaldiçoada. Eu tinha batido a cabeça e naquele momento a possibilidade de ter tido algum dano cerebral mais grave para me provocar alucinações daquele nível não era mais zero. Era totalmente possivel, o som do impacto da cabeça no chão não tinha sido desprezível. Eu deveria ir no hospital o mais rápido possível, isso sim.
Assim que entrei no hall daquele piso, esperando encontrar os elevadores e as portas dos quatro apartamentos por andar daquele prédio, o que vi foi surreal, direto de um sonho, de uma pintura de Dali.
Era a escadaria. A porta do sétimo andar. Parecia a mesma escada de emergência, tudo era igual, a cor do chão, das paredes, a placa afixada na porta, a lâmpada. O que estava diferente era a direção da escada, que agora subia em sentido horário, em vez de anti-horário. Eu estava ficando louco, com certeza. Era impossível este tipo de coisa estar acontecendo. Não tinha elevador, não tinha hall. Praticamente a mesma escada, só que girando em outro sentido.
Eu estava tendo um ataque psicótico.
Entrei na escada “invertida” e comecei a subir rápido, o máximo que eu poderia correr naquela situação. Eu só implorava para que tudo fosse uma alucinação, para que quando tudo isso acabasse eu pudesse rir sozinho desta situação.
A placa indicava sexto andar. Fisicamente impossível. Loucura. Resolvi descer as escadas, e tão logo apareceu a placa de sétimo. Era só descer então mais um lance nesse mundo louco que o oitavo está logo abaixo, pensei, e galopava, o Usain Bolt da escada.
Sexto andar. Abri a porta. Do outro lado, nada mais que a outra escadaria, subindo em sentido horário. Se eu não conseguia chegar por qualquer motivo no oitavo andar dentro deste mundo surreal então não me restava outra escolha senão descer até o térreo. Alguém estaria lá para me socorrer e levar para o hospital. Era nisso que eu acreditava. Sem mais opção além do desespero de cair em uma espiral de loucura e alucinação, atravessei a porta em direção ao “mundo” supostamente original, deixando o meu lanche pelo caminho. Não poderia ficar lento, não tinha ideia que tipo de teste, que tipo de inimigo, que tipo de mundo eu havia entrado. Não tinha espaço para calcular, racionalizar, entender o que estava acontecendo. Foi quando percebi que entre o sexto e o suposto quinto andar havia a janela. Na pior das hipóteses eu grito que nem louco pedindo ajuda, e alguém iria me escutar com certeza. Era minha aposta, porque nada mais fazia sentido. Tão logo aproximei meu rosto do quadro metálico da janela, ela se fechou com um estrondo. Estava tão próximo que o barulho começou a tintilar nos meu ouvidos, um chiado fino e agudo que sobrepunha qualquer outro barulho ambiental. Pelo menos não escutava mais os passos. Fiquei atordoado com o efeito mas tinha que chegar no térreo rápido e pedir ajuda.
Quinto andar.
Quarto andar.
Terceiro andar.
Segundo andar. A lâmpada não se acendeu. Eu teria que continuar até o primeiro no escuro, novamente. Sem ter outra escolha, respirei fundo e desci correndo, utilizando o corrimão como meu guia.
Continua.
Eu vou conseguir.
Mais um pouco.
Primeiro andar.
Breu total, o zunido no meu ouvido já se dissipava, estava ensopado em suor, sentia o coração fechar minha garganta, e meus olhos já não eram mais confiáveis. Era só continuar, que estou chegando, mais um pouco. Dez degraus. Oito. Seis. Cinco.
E então tropecei. Como um skatista que erra a manobra, temporariamente senti em gravidade zero, meu corpo se projetando para frente em direção a porta do térreo, como se voasse num espaço etéreo. Por puro instinto protegi meu rosto, colocando os braços na frente, e senti o impacto na pesada porta corta-fogo. Estava atordoado, no chão, tonto, cansado, desesperado, no limite da loucura, alucinado. Levantei a cabeça, a única coisa que eu conseguia mexer, me voltando em direção ao lance de degraus acima. O vulto estava ali parado, uma figura disforme acinzentada, contornos indefinidos, como se fosse feito de chumaço de algodão. Uma figura fluida, que pairava sobre o último degrau do lance, e não tocava em nada, flutuava no ar. Eu tentei esticar meu braço para puxar a maçaneta que estava em algum lugar, mas percebi que ele estava quebrado. Não sentia dor, mas sentia o osso fora do lugar rasgando o músculo e pele. Ali na escuridão, indefeso, a figura começou a se aproximar. A cada degrau que avançava um chiado como se fosse de estática aumentava de volume, abafando qualquer outro barulho, como o da minha respiração. Como se dois braços se projetassem da figura se esticando em minha direção, praticamente surdo pelo ruído, a figura me agarrou pelo pescoço.
Não lembro mais de nada.
Hoje a enfermeira me trouxe pudim de leite. Disse que posso comer doce mais com parcimônia, até eu me recuperar, que pode demorar um pouco mais de tempo. O pudim estava delicioso, não estava muito doce e tinha a consistência firme. Hoje faz quinze dias depois do coma e finalmente estou conseguindo escrever algo mais que garranchos ilegíveis.
O médico disse que fiquei dois meses desacordado devido a um trauma crânio-encefálico mas que provavelmente vou me recuperar completamente. Que haviam me encontrado desmaiado atrás da porta do térreo do prédio em cima de uma poça de sangue, provavelmente após ter tropeçado na escada e batido com a cabeça no chão. Também disse que estava com uma fratura exposta no braço, e por isso meu braço esquerdo está engessado. Que tinha sido o porteiro do prédio quem chamou a emergência.
Lógico que não expliquei nada a eles, ninguém iria acreditar. Era mais fácil aceitar que foi um mero acidente, uma lâmpada queimada na escada de emergência que contribuiu para o acidente. Eles estavam convencidos do que aconteceu, não tinha argumentos para mudar a mente deles.
Mas pra mim, foi tudo real, físico, verdadeiro. O vulto. O porteiro. A escada infinita.
— Enfermeira, poderia me dizer que andar que é esse? — perguntei, depois de receber o pudim.
— Ah, este? É o oitavo andar senhor — agradeci, e ela em seguida saiu do quarto.
Foi então que percebi que atrás da janela de vidro que exibia o céu daquela noite sem estrelas, o vulto estava ali do lado de fora, me esperando, flutuando no vento, enquanto esboçava um sorriso maligno.