Era um fim de tarde qualquer. Estávamos parados à beira da estrada, no acostamento, olhando o céu escuro que surgia ao leste. As primeiras auroras boreais surgiam na esfera celeste. Seus tons esverdeados refletiam em nossos olhos, anunciando que aquele momento poderia ser um dos últimos. A sombra projetada no solo, no chão de terra, no asfalto, me fazia lembrar o quanto que fizemos para chegarmos até ali. Vivos.
Já havia um ano. Desde quando começaram a criar os planos de emergência, a evacuação das cidades. Primeiro, tentaram minimizar o impacto que ali poderia ter em nossas vidas. Logo, tentaram nos alertar para uma possibilidade daquilo ocorrer. Depois, os cientistas ficavam cada vez mais temerosos, se reunindo constantemente. No ponto máximo, as pessoas começaram a sair de suas casas e procurar locais mais seguros. Como se houvesse um local a se esconder… No fatídico dia, nada do que fora planejado saiu como esperado. Ninguém podia prever a magnitude daquele fenômeno. Em pouco tempo, o abastecimento de água. Depois, os alimentos. Até que um dia, a eletricidade. Estávamos no escuro, tentando entender o que deu errado, ou o porquê daquilo. Nenhuma explicação científica faz sentido quando você está à beira da extinção.
Nesse tempo, não deu outra. A falta de suprimentos provocou uma série de colapsos. Nem o país mais civilizado do mundo poderia escapar ao anarquismo da sobrevivência. Os supermercados viraram depósitos de conflitos, todos tentando pegar o seu suprimento de água potável para o próximo dia. Mas, conforme o tempo passava, os fracos ruíram. A seleção natural eliminou a maior parte da população.
Dos que conhecíamos, sobrou só nós dois. Evitávamos fazer contatos com quem encontrássemos pelo caminho. Uma atitude egoísta, com certeza, mas não sabíamos quem estaria por trás daquelas faces. Utilizamos toda a nossa mente para poder criar soluções complexas para problemas simples. Quando se está sem tecnologia, coisas simples como ter água filtrada parece impossível.
Ainda lembro o dia em que vi um ônibus destruído em minha rua. Não sei porque fizeram aquilo. Talvez estivessem revoltados pelo que estava acontecendo. Ou apenas por diversão. Mas eu lembro que pintaram na lateral do ônibus a seguinte frase:
“Ninguém sobreviverá.”
Essa frase não esqueço. Para mim, era bem emblemático um ônibus todo destruído com essa frase. Uma metáfora de ruína…
Os primeiros dias sem comida são os piores. Primeiro porque você está obviamente com fome. E o segundo é que você não tem coragem de roubar ¬– não havia outro jeito a não ser saquear as lojas e supermercados. Mas a fome é a sua sobrevivência: só com ela você faz coisas que normalmente não faria. Você age por instinto. Depois você se acostuma: já pega as manhas pra pegar mais comida e já sabe onde as coisas ficam. Além disso, você se acostuma a ingerir poucas calorias diárias.
Observávamos que todas as pessoas eram iguais, não havia o maior poderoso, não havia o oprimido. Era cada um por si, lutando para viver. Nós, bem, tentamos nos manter unidos o máximo que podíamos. As brigas ocorriam, pois nossa mentalidade estava afetada. Mas sempre ficamos juntos. Sabíamos que precisávamos depender um do outro. Eis que um certo dia decidimos migrar. Procurar algum local melhor, apesar de nossas baixas esperanças.
A coisa mais fácil era achar um carro. Apesar da evacuação, ainda tinham muitos em garagens e estacionados. O difícil era fazê-los funcionar. As casas também eram boas fontes de comida. Geralmente os carros não estavam com a chave, a bateria tinha descarregado. Ligação direta não dava muito bem nos carros mais novos, computadorizados, nas quais a chave tinha um código. Porém encontramos um com a chave ainda no contato: alguém, na pressa, nem pensou nisso. Mas tínhamos outro problema: a falta de combustível. Os postos geralmente estavam secos, as pessoas todas abasteceram antes das evacuações. Isso nos obrigava a ir em dezenas de postos até achar algum com combustível.
Viajávamos sem muita direção. Sem mapas ou GPS, preferimos seguir o norte. Também achamos melhor viajar à noite e dormir de dia. Um carro em bom funcionamento é um chamativo para ladrões. A viagem nos possibilitava ver o céu estrelado, sem nenhuma luz para atrapalhar. Auroras cintilavam sobre nossas cabeças. A brancura da via láctea reluzia no metal meio fosco do veículo. Seguimos e seguimos por dias. Encontrávamos algumas agrupações humanas pelo caminho, outras pessoas solitárias. Buscávamos por comida, água, aquecimento.
Chegou um dia em que vimos o mar. Aquela imensa quantidade de água, e nós morrendo de sede. Improvisamos um pequeno laboratório de destilação, para obter alguns mililitros do líquido. A água sem gosto descia por nossa garganta como se fosse a coisa mais doce já existente. Na fome, quebramos alguns cocos caídos pelo chão, extraindo a sua carne e bebendo seu líquido. Era tudo tão bom, um jantar de gala. O mar estava azul azul, refletindo o céu limpo do tempo bom que fazia. Não havia uma sujeira na areia, nada ali que pudesse indicar alguma passagem humana.
Estávamos perdidos, nosso referencial de direção tinha desaparecido. Tentávamos rodar em grandes rodovias, por causa do combustível. Em nossos trajetos, encontrávamos com algum outro carro solitário na estrada, viajando sem direção. Em um desses dias, nos deparamos com algo horrível: um avião caído na estrada. Havia destroços por bastante espaço. A fuselagem tinha se partido em três partes, e as asas estavam a metros de distância. Dentro dele havia vários corpos em decomposição. As moscas atrapalhavam nossas buscas por suprimento ali dentro. Encontramos de útil apenas bolachas porque toda a comida já tinha apodrecido.
Rodamos e rodamos e rodamos. Até que chegou uma hora que a gasolina havia acabado. Encostamos a beira da estrada, apenas para observar o céu. Nosso suprimento de comida apenas garantiria nossa vida por uns 3 dias. O de água, também por uns 3. Começamos a olhar as auroras que surgiam no crepúsculo, auroras estas que surgiram depois do acontecimento. Nunca pude imaginar que poderíamos vê-las próximo aos trópicos, apenas nos pólos. A natureza enganou a gente novamente. Resolvemos ficar por ali mesmo, apenas aproveitando o que seria nossos últimos momentos. Os fótons da luz do sol iam deixando de atingir nossos olhos. O tom roxo domou o céu e víamos surgir estrelas. Observávamos atentamente a esfera celeste, procurando as belezas do universo. O espetáculo das auroras só embelezava mais aquele momento. Estava ao seu lado, nos preparando para o fim chegar. Enquanto isso, lá na linha do horizonte, olhamos para pontos brancos de luz. Eles pareciam aumentar de tamanho e aproximar de nós. O coração palpitou mais forte e fixamos o olhar naqueles pontos. Será que restara algum fio de esperança?