Eu não nasci de forma natural. Fui criado de artificialmente, manipulado geneticamente para que pudesse ter características sobre-humanas. Fui incubado por máquinas avançadas, inteligências artificiais e cientistas sociopatas que desde a minha concepção me deram os nutrientes e cuidados necessários para que ao menos pudesse me desenvolver desde quando eu era um feto até me tornar mais independente. Meu identificador era PI998 (Prototype Individual 998), um espécime arquitetado para ter a forma humana, carne e osso, pele e tripas, mas com genes artificiais e tecidos biônicos que me deram um trato especial: a habilidade de me integrar com quase qualquer tipo de constructo artificial feito pelo Homem. Com o mero contato físico da ponta dos meus dedos sou capaz de saber imediatamente qualquer característica de um objeto complexo, seja um canhão eletromagnético, um trem de levitação, um rebocador espacial ou um mecha. Como se minha mente se infiltrasse em cada átomo do objeto, circuito eletrônico e processador, e consigo descobrir com qual material foi construído, como as peças estão interligadas, como são os detalhes de seu funcionamento, de forma que um grande esquemático detalhado se revelasse em minha mente, dispensando a necessidade de manuais de operação e reparos. Mesmo sem treinamento anterior, não preciso de muito tempo para aprender a operar uma máquina complexa, dependendo apenas de minha destreza, capacidade de analisar grandes quantidades de informação, experiência com objetos semelhantes e um pouco de tempo. Mas minha maior habilidade é a possibilidade de manipular e controlar estes objetos, desde que contenham um cérebro eletrônico: eu consigo hackeá-los — ou ao menos tentar — apenas através do contato físico, me comunicando com estas máquinas com o toque das minhas mãos.
Permita-me uma correção. Somos capazes de tudo isso. Como meu nome implica, não sou o único. 1230 espécimes que nem eu, mas com características físicas e psicológicas distintas, foram produzidos pela Antares Genetic, uma subsidiária da Smith-Shimano Corpro, aquela (e esta também) uma companhia que hoje posso dizer que representa o que há de mais anti-ético na civilização interestelar. Eu nasci, ou melhor, fui gerado em 4973U no planeta Zeld-439. Como todo projeto ambicioso de gente sem escrúpulos e compasso moral inexistente, nossos poderes sobre-humanos não eram impedimentos para sermos tratados como seres inferiores do que petbots. Vivíamos em instalações vigiados por câmeras e passamos a maior parte do tempo em cubículos, cada movimento, comportamento e ondas encefálicas analisados por cientistas e inteligências artificiais, gerando petabytes de dados para serem utilizados na próxima geração de PIs. Era o projeto Phobos, um nome que ironizava levemente as restrições impostas após o evento de Deimos, quase 2 mil anos atrás. Tínhamos rastreadores implantados sob nossas peles, no antebraço, para que nossa localização estivesse a uma holotela de distância dos monitores, como eram conhecidos os cientistas. Torturas físicas e psicológicas eram diárias, pois testavam nossa resistência a intempéries naturais e artificiais. Fome e sede. Dores de desmembramento inflingidas por eletrodos subcutâneos. Alteração do estado mental via drogas para extrema depressão, raiva, angústica, tristeza, excitação, alegria, medo, violência. Rompimento de músculos e órgãos para testar nossa velocidade de regeneração com nanobots. Privação de sentidos e de sono.
Naturalmente, os espécimes — nós — tinham sido construídos para o que a humanidade sempre dedicou os maiores recursos humanos e econômicos: para a guerra. Aos 9 anos de idade fui enviado para a primeira missão em um campo de batalha, que mais tarde descobri que a taxa de sobrevivência era de 50%. Hackear um autômato terrestre lançador de mísseis e fazê-lo com que apontasse para os próprios aliados. Fui obrigado a fingir que era uma criança perdida em terreno desconhecido e me aproximei dos soldados inimigos. Após ter me integrado entre eles por algumas horas e convencê-los de minha suposta inocência, consegui me aproximar do autômato em um momento de descuido e cumpri minha missão. Foi a primeira vez que vi com meus próprios olhos o horror do campo de batalha, quando aqueles que haviam me dado água e ração me tratando como uma criança perdida, um civil sob fogo cruzado, agora não eram mais do que amontoados de pedaços de carne e osso carbonizados jazendo no solo. Seus trajes de proteção eram insuficientes para o poder de fogo daqueles mísseis.
Assim que voltei para o laboratório, fiquei 5 dias sem comer por vontade própria, um misto de nojo e trauma. Os monitores então decidiram forçar a alimentação via sonda após a análise das IAs indicarem que era extremamente provável que eu morresse de inanição voluntária, mas elas eram estupidamente incapazes de achar a raiz da deterioração do meu estado físico e mental. Hoje eu sei que certas coisas só podem ser compreendidas com compasso moral, e isso não era algo que aquelas IAs limitadas possuíam.
Apesar da minha recusa em voltar ao campo de batalha, nada que o efeito de estimulantes poderossíssimos não me convencesse do contrário. Aos 10 anos fui forçado a desarmar uma mina de dissolução perto de uma cidade durante um bombardeio pesado. O nome não era à toa, era um arma que literalmente quebrava todas as ligações atômicas em um raio de 3 quilômetros, pulverizando o que tivesse em seu alcance. Estava sob pressão sabendo que centenas de civis e militares tinham — querendo ou não — confiado suas vidas em mim. Minhas mãos tremiam quando a interface eletrônica do dispositivo se revelou diante dos meus olhos, as ligacões mecânicas e elétricas, o núcleo de detonação, mas o meu alento é que se eu cometesse algum erro eu jamais iria ter tempo de saber o que havia me matado. Fiquei em torno de 15 minutos em um estado mental que chamamos de deep-linked state, uma espécie de transe que a reação a qualquer ação externa é extremamente letárgica, deixando-nos vulneráveis a ataques furtivo. Somente depois de desarmar a mina com sucesso que descobri que das 5 últimas tentativas em situação semelhante houveram 4 detonações indevidas.
Até os meus 13 anos, era essa a minha rotina como um Prototype Individual. Viver num cubículo. Fazer testes e mais testes. Ser mandado para os campos de batalha para hackear, desarmar, operar equipamentos inimigos, inutilizar suas defesas e seram destroçados pelas poderosas armas aliadas, abater drones e aeronaves, e depois assistir ao rastro de sangue e destruição, a carnificina que os humanos nunca pararam de infligir uns ao outros. Desde as mais horríveis cenas de corpos mutilados com suas tripas remoídas e capacetes quebrados sujos de cérebro, banhados em lago de sangue à fumaça negras dos mechas incendiados e o odor dos pilotos carbonizados, cada cena, cada missão, cada batalha, tudo ficava eternamente gravado em minha mente, sem falar de cada ação minha e de meus colegas PIs para serem analisados em tempo real pelas IAs. Cada machucado, corte, arranhão, osso quebrado, órgão rompido era logo reparado via nanobots, drogas e cirurgias automatizadas, como se eu fosse um ser invencível, invulnerável e imortal. Não só eu, mas todos os outros PIs, com quem eu tinha pouco contato além de seus identificadores em campo de batalha. Fora do campo de batalho, éramos mantidos praticamente isolado um dos outros com pouca possibilidade de contato, que depois descobri ser para evitar eventuais motins.
Então, aos 13 anos, depois de passar por todo esse horror, finalmente percebi que eu queria uma coisa: morrer.
Não queria mais fazer parte deste projeto, desta vida de destruição sem sentido. Não era para ser tão difícil. O problema é que eu era um covarde e não tinha coragem de tirar minha própria vida. Por isso, tinha prometido a mim mesmo que na próxima missão iria dar um jeito de morrer durante um conflito, uma casualidade de batalha, como se fosse quase sem querer.
Mas tinha um problema. A minha análise comportamental iria provavelmente revelaria minhas intenções. Os cientistas não poderiam ser dar um luxo de perder um espécime Phobos, as IAs já deveriam ter gerado centenas de relatórios preocupantes para eles. Será que eu seria drogado, medicado, receberia algum tratamento psicológico subconsciente para que me impedissem de me matar? Eu não teria outra escolha. Queria morrer livre, longe daqueles cubículos.
Se estou aqui hoje é porque não morri.
Era uma missão com diversos outros Prototype Individual. PI699, PI788, PI900, PI932, PI1001, PI1017, PI1018. Lembro do identificador de cada um deles e seus rostos. Era o único momento de interação com outros (sobre-)humanos que não envolvia os experimentos médicos dos cientistas da Antares. Semelhante a outras missões que éramos alocados, teríamos que adentras as linhas inimigas de forma surrupial e discreta, tendo a possibilidade de sermos mortos a qualquer momento, para hackear e operar suas armas. Apesar do meu principal objetivo eu não poderia me expor desnecessariamente: minha morte significaria revelar nossa posição, botando em risco todos os outros do grupo. De certa forma, esta operação em grupo e não individual foi o que me salvou.
O objetivo era invadir fisicamente um WORC (Weapons Operation Remote Center), uma estrutura construída na retaguarda de batalha em que operadores remotos pudessem operar os equipamentos no fronte. Apesar de diversas armas serem autômatas e poderem tomar decisões próprias ao atacarem, ainda assim humanos gostavam de ter controle e sobrepujar as decisões da IAs, já que ter o poder e controle das coisas é uma das características mais humanas que existe. Também servia como um ponto de coordenação e comunicação para os pilotos do mechas, montando e repassando táticas de batalha, formações e ordens. Um domo estático azulado porém resiliente de força sobre o centro impossibilitava ataques aéreos ou com mísseis. Portanto, a solução era enviar nosso batalhão Phobos para se infiltrar no centro, hackear as armas para atacarem as próprias posições, e se possível, desativar o campo de força para um ataque aéreo no complexo.
Estávamos tão perto do nosso objetivo. Nossa tática de infiltração silenciosa falhou consideravelmente e tivemos que utilizar nossas armas pessoais junto com o hackeamento dos equipamentos inimigos para que por pouco pudéssemos adentrar o WORC. Câmeras desativadas. Sensores de presença com dados falsos. Minas anti-pessoais desarmadas. Turrets automáticos virados contra o inimigo. Três PIs, PI699, PI788 e PI1017 estavam mortos. Uma montanha de cadáveres nos rastros por onde passamos. Finalmente na sala de WORC, com os painéis e telas lambuzadas de pedaços cerebrais dos operadores assassinados por nós, 3 de nós que restaram começaram o hackeamento. PI1001 ficou de sentinela no corredor de acesso à sala, pronto para matar qualquer um que passasse ali. Imersos em deep-linked state, nos conectamos aos sistemas e primeiramente reativamos as câmeras e sensores de monitoramento, para que pudéssemos reagir prontamente a um contra-ataque inimigo. Depois tentamos acesso a cada arma inimiga que estivesse com algum link aberto com a central. Não era uma tarefa rápida, sistemas complexos podem demorar várias horas para serem hackeados e obviamente não teríamos todo esse tempo. O domo de proteção impediria que eles tentassem um ataque contra a própria infraestrutura para nos matarem, mas logo estaríamos batalhando contra as equipes de suporte em terra que invadiriam o centro.
Porque estávamos em deep-linked state era impossível reagirmos a ataques rápidos e certeiros. PI1001 era nosso único alerta pois poderíamos demorar alguns minutos para voltar deste estado profundo de volta pro mundo real.
Uma. Cinco. Dezoito. Vinte. Quarenta e três. Finalmente, todas as 53 armas autômatas estavam sob nosso controle. Havíamos demorado 15 minutos até este ponto.
Ainda conectado diante do console de controle, senti uma sensação tintilante em meu pescoço, uma espécie de formigamento, e embora não tivesse exata consciência do que estava acontecendo, decidi por iniciar o processo de desconexão. A cada momento que se passava a sensação ficava mais profunda e aguda, e aos poucos conforme minha consciência voltava ao mundo real compreendi o que tinha acontecido. Um dos operadores supostamente morto, cujo corpo imóvel e aparentemente inconsciente aos meus pés, havia tentar cortar minha garganta com uma faca. Sua força já não era a mesma, já que dois dedos da sua mão tinham sido amputados provavelmente por projéteis. Mas o que restou de suas energia tinha sido suficiente para que a lâmina de grafeno de sua faca cortasse a lateral do meu pescoço, da garganta até a nuca. Desabei no chão de dor, a respiração pesada e ofegante, como se aos poucos me afogasse num mar de sangue. PI1001 percebeu o movimento e atirou seis vezes, até o operador para de se mexer, e ainda atirou três vezes na cabeça. A última coisa que lembro era o aglomerado de ossos e tecidos moles que havia se tornado a face do operador, e depois, ficou tudo escuro. Naquele momento, eu deveria estar aliviado de finalmente ter me livrado deste mundo. Se era isso mesmo o que eu queria, por que a última coisa que senti foi angústia?
***
— 998, 998. Está acordando?
Minha visão ainda estava embaçada e era incapaz de distinguir o que enxergava. O teto era provavelmente marrom e uma fonte de luz estava à minha direita. Meu estado era de confusão mental, não era capaz de lembrar meu identificador, onde eu estava, o que havia acontecido. Mas a voz feminina sussurrada… esta voz eu jamais iria esquecer.
— Os nanobots funcionaram. Pensei que era seu fim.
Mesmo consideravelmente atordoado eu me esforçava para tentar lembrar quem era ela. Eu a conhecia de algum lugar, mas meu corpo sem forças me impedia até mesmo de virar o rosto para encontrar a silhueta. Conforme o tempo passava, minha visão se recuperava, e já conseguia perceber o teto de madeira, e a fonte de luz era nada mais que uma janela enquadrando o céu cinza-avermelhado nebuloso. A sensação de tintilar no pescoço ainda existia, e aos poucos movi minha mão para senti-lo, roçando os dedos onde estava o ferimento. Senti um relevo largo e alto ao longo de toda a lateral direita, do pomo de Adão até a nuca. Eu não estava morto.
— O que aconteceu? — como se tivesse embriagado, perguntei.
— Você voltou. Cortaram teu pescoço. Então te tratei com os nanobots regenerativos. Você quase morreu. Você dormiu por 25 horas.
Vagarosamente virei meu rosto para a esquerda e a silhueta definida era nada mais que PI1001. Estava tão desorientado que demorei para chegar nesta resposta.
— 1001? Cadê os — dei uma tossida engasgada, a voz baixa — outros?
— Morreram. Só sobrou nós dois. A missão…
Ela inspirou profundamente, olhou para janela e disse:
— …falhou.
Não era inesperado. As AIs tinham indicado 28,9% da missão suceder completamente, mas com probabilidade de sobrevivência de apenas 9,1%. Contra estas parcas chances, estávamos vivos. Só que não era esse o fim que queria.
— Por que você não me deixou? Era minha chance de ficar livre de tudo.
Eu esperava que PI1001 sentisse surpresa pelas minhas palavras. Mas o que eu recebi foi alento.
— Era a minha também. Mas não tive coragem. Agora podemos ser livres finalmente — PI1001 mostrou o antebraço direito enrolado numa atadura manchada de sangue. Foi desenrolando o tecido até revelar uma cicatriz em formato de quadrado, com um relevo parecido com a protuberância que senti no meu pescoço. — Desculpe. Removi o seu também. Sobrou alguns nanobots para fechar o ferimento.
Levantei o braço e estava também enfaixado, a atadura com um pouco de sangue. 1001 apoiou meu braço perto e desenrolou o tecido, revelando a cicatriz.
Percebi que minha arma leve, uma pistola eletromagnética, estava no coldre do meu traje de proteção, na região da perna. “Leve” era um eufemismo, porque apesar de poder segurar com apenas uma mão, seu poder era horrivelmente destrutivo.
Saquei a arma, destravei o botão de segurança e coloquei o cano dentro da minha boca, repousando meu indicador sobre o gatilho. A reação de 1001 foi sentar ao meu lado, os braços envolvendo as pernas, seu cabelos negros ocultando lateralmente a face.
— É isso mesmo que você quer, PI998? Você poderia ter feito isso antes, assim que recebesse o traje, em qualquer momento, mas você não fez. Tem certeza que é isso que você quer? Você tem medo de morrer? — sua voz era suave, calme, resoluta.
Meu dedo descansava no gatilho. Mas não se movia, como se seus nervos tivessem se desconectado do restante do corpo.
— Cada um de nós poderia se libertar de toda essa dor fazendo isso, mas ainda assim chegamos aqui vivos. Nós fomos criados desse jeito. Para matar, para torturar, para sermos torturados. Mas nós continuamos. Por que, você sabe? — ela continou.
Eu estava em silêncio, deitado no chão duro, incapaz de dizer algo. Meus olhos reviraram de canto, observando ela continuar a dizer.
— Porque somos humanos. Não somos IAs, pessoas não humanas, mechas, autômatos. Nós ansiamos por outro dia melhor, nos agarramos na esperança que amanhã será melhor que hoje. É irracional, mas é isso que está em nosso DNA. E temos medo do que não estamos acostumados, de mudança. Não estamos acostumados com nada além daquilo que nos foi ensinado, do que vivenciamos, das torturas, dos experimentos, da carnificina. Medo do que vai acontecer quando tudo isso acabar. Se todo dia sentimos dor, o que acontecerá com nós quando não sentirmos mais?
Suas palavras pareciam dançar na minha frente, mas não conseguia compreender de primeira. Esperança? Que palavra é essa? Eu já havia sentido isso alguma vez na minha vida? Estava tão acostumado com o dia a dia de ser um espécime geneticamente modificado que nunca tinha parado para pensar além disso. Estava sofrendo uma visão de túnel, porque não existiria para mim fora daquele cotidiano algo que valeria a pena estar vivo e assim a única solução para me libertar destas experiências terríveis seria pôr um fim em mim mesmo.
PI1001 estava me mostrando que havia um motivo para estar vivo. Medo. Medo de viver livremente, fora das regras da Antares Genetics, fora de supervisão das AIs e dos cientistas inescrupulosos, fora das missões em campo de batalha. Tinha tanto medo que me matar era preferível, pois não sofreria mas dor.
Mas eu era um covarde e também tinha medo de morrer.
Alivei a pressão no gatilho, joguei aquela arma longe e comecei a chorar. As lágrimas eram compostas por um misto de decepção, esperança, tristeza, e principalmente, acima de tudo, alívio. As toneladas que esmagavam meio peito dia após dia levitaram sobre mim e finalmente podia respirar livremente, sem me preocupar com em seguir ordens, com regras, com tortura, com sangue. PI1001 também começava a chorar, e percebi que nela também havia um acumulado de coisas que ela queria colocar para fora, e que finalmente estava conseguindo. Sob aquele céu cinza-avermelhado, um vento fresco soprava pela janela, fazendo balançar gentilmente os cabelos de 1001. Naquele momento, PI1001 matava a si mesma e finalmente eu matava PI998.
***
— Eu acho que poderíamos nos dar um nome, o que acha? — perguntei a 1001, enquanto abraçava e acariciava seu corpo despido no solo de uma gruta rochosa longe dos laboratórios da Antares, observando o interminável deserto rochoso de Zeld-439 que no horizonte se fundia ao alaranjado pôr-do-sol da estrela Reminés. A estrela nos aquecia levemente.
— Acho bom. Que nome que eu me daria…
— Por que você não dá um nome para mim e eu para você?
— Então — 1001 parou alguns segundos para pensar, repousando o dedo no queixo enquanto seus olhos caçavam nomes no ar. Era um fim de tarde morno, o primeiro que poderia ver livre, quantas vezes quisesse, sem as obrigações do campo de batalha. — Eu te darei… Soram.
— Soram… de onde você tirou isso? — inicialmente não estava muito satisfeito com a escolha, mas já tinha feito a promessa. Não era especialmente ruim, mas era um nome que nunca tinha ouvido.
— Significa “tenha paz” em uma das línguas aunicas.
— Ah — enquanto isso, ela me observava aguardando o nome que iria dar para a 1001. — Para você… Hayeon.
— Este eu gostei, de onde veio isso? — ela levantou a cabeça levemente, olhando em meus olhos.
— De onde será… — e desviei o olhar para o horizonte.
Deixei um ar de mistério porque não queria contar a verdade. Estava escrito atrás de uma fotografia que encontrei nos destroços de um mecha inimigo, durante uma missão. A foto pertencia ao piloto que tinha morrido esmagado por um outro mecha que eu havia hackeado e que estava já sem munição, num confronto de contato. Na frente, o piloto vestia uma roupa de clima quente bem casual e segurava as mãos de uma mulher de cabelos escuros que vestia uma roupa extravagante colorida e um colar dourado. Atrás, os nomes “Hayeon e Hilbert”, e a data, “17/07/4970U”.
Nesta época, tinha se passado um mês desde nossa última missão. Eu tinha sido gravemente ferido no pescoço e só não morri devido a ação rápida de Hayeon que injetou os nanobots na região para que o sangramente parasse antes que eu sofresse um choque sistêmico. Mas eu ainda estava fora de combate, uma parte dos músculos, cartilagem e ligações nervosas tinham sido seccionados e era incapaz de voltar a me conectar aos sistemas do WORC. Os demais tinham percebido que um grupo de inimigos estava se dirigindo ao centro, e se eles continuassem forçando com os ataques precisos aos sistemas de monitoramento e defesa que nós havíamos hackeado em breve iriam tomar o local. Hayeon então me arrastou para fora do centro a tempo, me carregando para longe do campo de batalha. PI900 era quem havia ficado de sentinela enquanto os demais ainda estavam conectados ao sistemas porém cada minuto que se passava um a um armas de defesa eram derrotadas. Hayeon escutava tudo via intercom e tentava coordenar remotamente a contra-invasão. Porém a situação era extremamente desfavorável, somente 4 PIs contra dezenas de soldados inimigos.
E antes que pudessem desligar o campo de força inimigo, os 4 estavam mortos. Hayeon me contou cada detalhe, cada grito de dor e desespero que eles experienciavam e transmitiam via intercom. Tudo foi tão rápido que não havia tempo suficiente para que nanobots que pudessem curar seus ferimentos. Sabendo que a missão tinha sido um fracasso, Hayeon recuou, me levando junto nos ombros com a força de seu traje, andando por várias horas até encontrar uma construção abandonada.
Já que não podemos escrever o passado e reviver os mortos, Hayeon e eu decidimos continuar em frente. Meus pensamentos suicidas se desvencilharam de mim aos poucos, e Hayeon sempre tentava tirar o melhor de minha personalidade e compaixão. Ela me deu forças, uma razão para ver o mundo de um jeito menos niilista e com mais serventia, aproveitando mais o caminho do que se preocupando com o destino. Seu sorriso me aquecia, seu jeito era otimista, seu ideal de liberdade me atraía, e agora fora dos cubículos, das torturas, da guerra, dos experimentos genéticos, era natural que começássemos a nos relacionar. Só tínhamos um ao outro nesse mundo, mas ela era a minha raison d’etre, e eu era a raison d’etre dela. Soram. Hayeon. Somente 14 anos depois de nosso primeiro choro que teríamos um nome o qual carregar nossos méritos e deméritos. Finalmente, indivíduos com nossas própria ambições, receios, sucessos e fracassos. Ideias inconcebíveis para os montros da Antares Genetics.
***
É possível que você esteja se perguntando como foi tão fácil sair das amarras da Antares, já que disse várias vezes dos experimentos horripilantes e da vida em cubículos. A nossa última missão tinha sido a primeira que não estávamos sob a constante supervisão dos Executores, um grupo armado que tinha como principal objetivo eliminar qualquer PI errante. Eles nos acompanhavam em todas as missões e estavam sempre a poucos metros de distância pronto para nos executar quando recebesse a ordem. Porém, somente uma vez que vi eles assassinando um PI, já que todos nós éramos controlados psicologicamente via condicionamento e drogas para suprimirmos qualquer instinto de deserção. Não era um método perfeito, como eu e Hayeon demonstramos, mas funcionava bem na maioria do casos. Como os cientistas gostavam de dizer, era um risco calculado. Na última missão, por ser um ataque furtivo estratégico em campo inimigo a presença deles foi considerada arriscada demais. Não que fizesse muita diferença já que a missão evidentemente falhou.
Hayeon e eu viramos errantes, sem muito destino, mas os anos seguintes a nossa fuga se mostrarem extremamente recompensadores. Ainda que o tempo em semi-isolamento na Antares tenha atrasado nosso desenvolvimente interpessoal, nossas habilidades durantes os conflitos, a resilência e destreza psicológica e física, e a quantidade de informação adquirida durante nossos treinos se mostraram extremamentos úteis em cada cidade e colônia que tivemos a opertunidade de visitar.
Nos tornamos cosmopolitas, nômades viajando por um canto do espaço pulando de planetas para luas para colônias auto-sustentáveis no espaço para estações espaciais. Muito além das paredes brancas monótonas e opressivas do laboratório conhecemos os enormes arranha-céus da megalópole de Protectus Invicta, no planeta Newton; a atmosfera e cultura da cidade subterrânea de Ag’or na lua de Joviedes no planeta Kraktus; a culinária das rações enérgicas e ultraprocessadas da colônia errante espacial de Terranostra, que trafegava próximo de um blinkgate. Nosso transporte para estes lugares só foi possível nos oferecendo como mão-de-obra para tarefas às vezes ingratas em naves piratas e contrabandistas. Os primeiros 2 anos próprios desta jornada foram de muito pouco foco em nosso futuro, apenas vivendo cada dia sem preocupação e saboreando as pequenas coisas de uma vida sem sangue. Finalmente poderíamos ser adolescentes quase comuns, explorando uma parte do vasto espaço povoado por trilhões de outros seres humanos e observando em primeira mão os efeitos relativísticos destas viagens. Uma época que eu me sentia vivo, otimista, feliz. Os pensamentos suicidas não surgiram novamente porque eu havia encontrado um motivo para continuar vivendo: Hayeon. E também havia descoberto o que era o amor.
Mas percebi que faltava algo mais. Um propósito para nós dois.
— Hayeon, eu tive pensando algo nas últimas horas — estava sentado num acolchoado velho um tanto desconfortável numa cabine da nave espacial Sibilant V, usada para contrabando entre as regiões mais afastadas do controle da União e as mais centrais. Ela estava deitada com a cabeça apoiada em minha coxa e eu segurava sua mão enquanto apreciávamos a pintura espacial que as estrelas formavam pela imensa janela em uma das paredes daquela cabine —, às vezes eu sinto sem perspectiva, um tanto letárgico. Me parece que falta algo mais. Não sei se é algum efeito colateral de como fomos criados, mas tem uma coisa que não fizemos durante todo este tempo.
— Se conectar, né? — ela retoricamente perguntou.
— Sim, eu estava pensando… Desde daquele dia até hoje estava com ódio de usar esta nossa característica, estava revoltado… Quase me odiando por ser assim. Mas se usarmos nosso poder contra a SSC podemos eventualmente parar—
Hayeon me interrompeu, se levantou bruscamente, soltando minha mão e emitindo um sonoro “não”. A baixa luminosidade da cabine dificultava entender sua expressão facial.
— Nós abandomos quem éramos, não quero voltar naquilo. Não precisamos de vingança, reviver toda aquela tragédia. Então, por favor, esqueça isso.
Fiquei sem palavras. Apesar daquele cômodo estar sendo apenas iluminado fracamente pela luz das estrelas pude perceber que ela olhava no fundo dos meus olhos. Após alguns segundo de silêncio, ela afirmou firmemente:
— Os PIs já estão mortos!
— Me desculpa, Hayeon — e puxei a mão dela. — Você está certa. Não precisamos reviver aqueles horrores.
— Mas… — ela fez uma pausa dramática, amaciando o tom de voz — poderíamos sim usar nossa habilidade para um objetivo. Vamos encontrar um.
Nada mais natural para nós, geneticamente modificados para conversar com as máquinas, do que procurarmos algum objetivo relacionado com interagir com sistemas artificiais, mesmo que seja algo que não vá mudar o mundo ou seja ligeiramente egoísta, sob a estrita condição de não machucar outras pessoas.
E em pouco tempo, com algumas conversas aqui e ali e demonstrando nossa habilidade, fomos promovido de meros ajudantes gerais a engenheiros. Não era em todo lugar em que se podia encontrar pessoas cuja existência era devida a capacidade de compreender e interagir com sistemas artificiais, e não tinhamos também a mínima intenção de esconder nossos poderes. O que deixamos explicitamente claro foi nossa intenção de não violência, mas todo o resto era jogo limpo.
Até que um dia as grotescas visões repentinas começaram.
Sem nenhuma correlação com horário, local, atividade ou companhia, as visões era acompanhadas de fortes dores de cabeça, um ensurdecedor ruído agudo, um calafrio tão estridente que meus ossos pareciam quebrar com a própria vibração. Eu vi um imenso monolito. Um céu com anéis rochosos. Mar gelatinoso de cor verde. A nebulosa de Carina. Uma esfera brilhante diante de um fundo negro. Uma pilha de corpos carbonizados. Nada. Algo dentro de meu olho esquerdo rastejava como um verme dando a sensação que o órgão fosse explodir, minha cabeça sentia uma pressão interna de milhares de atmosferas.
E então do nada, tudo passava.
Quando fui explicar para Hayeon o que estava acontecendo comigo, a surpresa:
— Você também, Soram?
Era uma consequência dos experimentos ou modificação genética? Não sabíamos, ou melhor, não sei até hoje. Havia épocas com dias sem nenhuma destas visões, e outras época com 2 ou 3 vezes ao dia. Felizmente, até então nunca tinha acontecido em nenhum momento crítico, perigoso, ou que nos pusesse em condição de vulnerabilidade.
Até que em um certo dia, 5 anos depois de nosso “renascimento”, este evento matou Hayeon.
***
O ano era 5013U. Por causa das diversas viagens próximas a velocidade da luz, tinhamos apenas 19 anos de idade. Como engenheiros, éramos integrantes de outra espaçonave, Gorgeous Girl, que naquele terrível dia estava prestes a pousar no planeta Jovinedes III. A jornada até ali não foi fácil, pois antes mesmo de chegarmos tivemos que hackear alguns sistemas de detecção implantadas pela União para identificar naves piratas e contrabandistas, como a nossa. Hackear via omninet é muito mais difícil do que diretamente, pois o sistema é muito mais convoluto e contém diversos firewall com IAs para ir atrás de nossas bundas. Após várias horas, eu, Hayeon e mais uma equipe de hackers conseguimos desabilitar pelo menos os sistemas de longo alcance.
Apesar de ela e eu termos feito um acordo informal de não entrarmos em trabalhos que levassem pessoas a se machucar, o principal objetivo desta viagem foi encontrar um fornecedor de Zentron, uma droga psicodélica pesada extraída de um vegetal que só existe naquele planeta, e distribuir para os assentamentos humanos próximos. Depois de uma breve discussão acalorada concordamos que pelo menos os usuários desta droga tinham decididos por si mesmo seus destinos. Nunca mais falamos sobre isso.
A droga não era exatamente proibida já que a União e suas corporações fantoches tinham o monopólio da exploração e comercialização, porém muitas colônias simplesmente não eram atendidas. Gorgeous Girl estava apenas explorando um mercado sem concorrentes…
O planeta rochoso e irregular era uma bela escultura natural, com as imensas cachoeiras, rios límpidos, vegetação colorida e fauna de animais de pequeno porte. A nave havia pousado em um campo entre paredões rochosos relativamente apertado, para ficarmos mais invisíveis aos sistemas de detecção a mais de mil quilômetros do local de encontro com o forncedor. Se levássemos a nave até o local, radares de detecção em solo iriam identificar a nave não identificada e provavelmente seríamos abatidos. Sabíamos que estes radares eram isolados da omninet, então somente indo fisicamente até os instrumentos e hackeando seus sistemas seria possível levar a nave até o ponto de encontro. A quantidade da droga era tanta que em princípio seria muito mais custoso fazer diversar viagens com hovertrucks. Mas no final, iríamos descobrir da pior maneira qual seria o custo da alternativa.
Eu, Hayeon e mais quatro integrantes do grupo partimos em um hovercar em direção às estações de radar ao longo do caminho, cujas posições já sabíamos de hackeamentos via omninet. Havia 3 delas, com alcance entre 300-500 km de raio — o que causava uma sobreposição na área de alcance — e que precisávamos silenciosamente desativá-las. O hovercar viajava entre 1 e 20 metros acima do solo e não mais que isso, justamente para não sermos detectados. O primeiro, a 400 km do local do nosso pouso, tinha apenas 325 km de alcance e foi simples colocá-lo fora do ar. Era um equipamento com forma retangular de não mais que 2 metros de altura escondido numa floresta de média densidade. Sua antena omnidirecional que girava eletronicamente ficava situada acima das copas das árvores, e uma espécie de mastro ligava a base à antena. Nossas mão tocaram o equipamente e em poucos minutos estava fora de operação.
Mesma coisa com o próximo radar, 200 km à frente. Com o toque das nossa mãos desativamos o aparelho, subimos de volta no hovercar e seguimos para o último obstáculo.
O próximo estava a pouco mais de 400 km, dando um tempo de viagem total de aproximadamente 3 horas. Poucos minutos antes de chegar, Hayeon que estava ao meu lado segurando minha mão disse algo súbito e críptico, como se soubesse o que iria acontecer:
— Você vai me amar em qualquer espaço que eu esteja?
— Claro, para sempre.
Respondi sem hesitação e dei-lhe um beijo, porém a partir daquele momento senti um desconforto que não sabia explicar. Claro, eu jamais imaginava do que viria acontecer, mas olhando em retrospecto ainda hoje essa rápida troca de palavras revelou um estranho uso de “espaço”. Por que ela não disse “lugar”, “situação”, ou outra palavra equivalente?
Estávamos no meio do processo de desabilitar o último radar quando um traficantes do grupo deu um tapa nas minhas costas e disse:
— Acelera aí, tem algo nas matas!
O local tinha uma vegetação mais densa do que ao redor dos outros radares, mais parecia uma selva. Como eu estava em deep-linked state, ainda demorei alguns segundos para compreender as palavras mas eu não tinha ainda desligado o sistema. Hayeon estava tendo dificuldade em hackear o processador quântico para aceitar nossa injeção de código, como se esta peça rodasse um software diferente dos demais, enquanto eu não conseguia manipular a rotina de desligamento. E se interrompessemos a conexão naquele momento, teríamos que reiniciar tudo de novo.
Teria sido a melhor escolha.
Projéteis começaram a atingir o radar fazendo ressoar um estrondosos barulhos metálicos. O aparelho entrou em estado de bloqueio completo pois entendeu o ataque físico como uma intromissão em seu sistema, preenchendo nossa mente com alertas. Foi naquele momento que percebemos a emboscada e começamos imediamente a saída do estado profundo.
— A União está aqui! — alguém gritou.
Os sentinelas que nos protegiam gritavam comandos um para os outros enquanto o barulho das armas e projéteis inundavam aquela densa floresta como o inferno. Naquele momento, quebramos implicitamente o acordo de não machucar outros seres humanos, pegamos nossas armas e revidamos também. Os atiradores estavam escondidos por entre os troncos das árvores e corremos para dentro do hovercar tentando escapar rapidamente. Um dos sentinelas não conseguiu chegar a tempo sendo atingido na cabeça e caiu em nossa frente. Puxamos outro, ferido na perna, para dentro do hovercar, manchando o piso de sangue.
— Rápido, nanobots! — eu passei para Hayeon o frasco de nanobots regenerativos e ela injetou na perna do sentinela. Um pedaço significativo da coxa estava faltando o que ia atrasar o trabalho dos regeneradores. Conforme o veículo flutuava do solo para o ar verticalmente, uma rajada de projéteis atingia a estrutura metálica do veículo. A blindagem estava segurando razoavelmente bem os ataques porém as janelas feitas de plástico eletrônico começavam a dar sinais de enfraquecimento, pois eram incapazes de se auto-regenerarem a tempo, formando rachaduras.
— Um dos motores iônicos foi danificado mas ainda temos potência, se formos alto o suficiente a parte de blindagem nos oferece proteção — o sentinela que comandava o veículo disse, apesar de em condições normais a aparelho ser auto-guiado. Conforme nos afastavá-mos do local do incidente observamos a silhueta da antena acima das árvores ficar cada vez menor.
Estamos salvos, foi o que pensamos.
Aquele hovercar não tinha sido preparado para o combate, era um meio de transporte apenas. Quando o alarme de ataque por míssel soou, sabíamos que era o nosso fim.
Como se fizesse um loop no ar, nos empurrando contra o chão do veículo, o hovercar deu uma volta de 360 graus em um plano vertical. O míssel havia desviado por pouco de nós, explodindo algumas dezenas de metros à nossa frente. Sem eu perceber, Hayeon havia tomado controle direto do hovercar, entrando em deep-state apenas pelo contato com o painel de instrumentos dele. Ela estava agindo de forma muito mais avançada e rápida do que a IA que normalmente guiaria o veículo.
— Hayeon, abaixa a altitude! — gritei para ela que não respondeu, mas compreendeu quando percebi o veículo descer.
“O que devemos fazer?”, era a pergunta na minha cabeça. Com Hayeon no controle e 4 de nós prontos para combate, era possível que a mera evasão rápida nos tirassem de perigo. Não podíamos voltar para a nave pois isso poderia revelar a Gorgeous Girl.
Outro alarme soou, era outro míssel em nossa direção. Hayeon desceu o hovercar para dentro da mata, reduzindo a velocidade mas ficando bem mais difícil para o míssel nos atingir, protegido pelo obstáculo natural das árvores. Ouvimos o som da arma inimiga explodindo e olhando para trás observamos um flash de luz e as copas de alguma das árvores envoltos em uma imensa bola de fogo.
Os alarmes não paravam de gritar, outro e outro e outro míssel era lançado em nossa direção, mas Hayeon fazia manobras invasivas cada vez mais intensas e imprevísiveis. Loops, curva fechadas, acelerações e desaceleraçãoes abruptas, quase acidentes passando tão rente dos galhos e troncos das árvores. Quando finalmente viajamos longe o suficiente para não recebermos mais alertas, olhamos um para os outros tensos com a nossa escapada da morte. O sentinela com perna ferida havia se recuperado parcialmente, mas chorava pela perda de seu colega, que havia ficado para trás. Durante este silêncio no interior do hovercar, a dor de cabeça aguda e impossível, o olho esquerdo como se fosse explodir, o cenário horripilante de algo que nunca vi. Apesar de tudo isso, senti a sensação de zero g, meu corpo flutuando dentro do veículo. Estávamos caindo.
Não lembro de nada entre esse momento e o momento quando acordei em solo num lamaçal, uma das pernas com fratura exposta, meu ombro deslocado, o gosto de sangue na boca, o tórax dolorido como se tivesse quebrado as costelas. A dor de cabeça terrível que eu sabia que não era mais resultado das visões, mas sim por causa do impacto. Consegui alcançar dois frascos de nanobots dos bolsos e injetei em mim mesmo, mas a perna não iria se resolver se pelo menos não colocasse o osso no lugar.
— Hayeon!
Gritei pelo seu nome quando me dei conta do que aconteceu. Comecei a rastejar pelo solo lamacento e vi os pedaços do hovercar espalhados por todo lado. Um dos sentinelas gemiam de dor próximo a mim e outro estava imóvel, o corpo retorcido alguns metros à frente. Diversos galhos e árvores haviam se quebrado formando uma mini-clareira na mata. Meio rastejando meio agachando, continuei numa lenta luta procurando pela minha namorada, a única pessoa que amei na vida.
E achei. Mais de uma dezena de metros à frente, entre duas imensas árvores, na beira de um pequeno riacho de água cristalina, estava Hayeon. O rosto branco devido a perda de sangue, os lábios secos, os olhos semiabertos e imóveis, a mão rígida e suja de terra. Somente a parte de cima de seu corpo. Tive a terrível e horripilante visão dos seus órgãos revirados e espalhados sobre a lama, os intestinos cobrindo o solo úmido e grudento, seu sangue banhando o lamaçal em vermelho. A outra metade estava poucos metros adiante, imerso no pequeno riacho, transformando a água cristalina em tom avermelhado, as pernas dilaceradas e tortas. Mas seu rosto estava inteiro, com nenhuma marca de sangue, só a sujeira da floresta. Minha dor física não significava mais nada diante do inferno dantesco que estava vivendo, do trauma de ter perdido a única pessoa que era importante na minha vida, a raison d’etre, quem impediu que eu me matasse na minhas horas mais fracas, quem me mostrou o caminho da liberdade de verdade, quem me satisfez nos luares, quem jamais largou minha mão, quem deu meu nome e a única que me amou.
Hayeon nunca mais vai voltar.
***
Mesmo hoje, em 5016U, não consegui descobrir porque tínhamos — e ainda tenho — estas visões e dores de cabeças repentinas. Uma possibilidade pode ter sido as manipulações genéticas imperfeitas, o trauma da tortura que sofríamos, as drogas que tomávamos. Mas nenhuma destas explicações será suficiente para dizer o porquê que tinham as visões ao mesmo tempo. Será que outros PIs sobreviventes sofrem da mesma coisa? Não consegui encontrar nada na omninet e também nunca achei outro PI, nem sei se a Antares continua fazendo esses experimentos anti-éticos. O espaço é gigantesco e suspeito que seja impossível encontrar um punhado de humanos com a mesma história que eu neste universo de trilhões.
Depois de resgatado e de volta a Gorgeous Girl abandonei meu posto como engenheiro. Sem ela, fiquei sem chão, sem suporte, porém uma coisa que Hayeon me ensinou é procurar por um lugar que eu seja livre e que tenha um próposito. Confesso que os pensamos suicidas me rondaram por muito tempo depois de sua morte, mas eu sei que onde quer que ela esteja, ela ficaria extremamente decepcionada e envergonhada de mim se eu me matasse ao invés de seguir em frente. Porque algum dia vou encontrá-la, e quando este dia chegar quero ter feito a coisa certa.
Por isso, ironicamente, pouco mais de 1 ano depois de sua morte, me alistei na União para ser um piloto de mecha. Não culpo a União pelo o que aconteceu, porque sabíamos dos riscos. Mas se como piloto eu conseguir salvar mais vidas do que tirei e ter algo para que Hayeon, em qualquer espaço que ela esteja, se orgulhar, assim eu farei.
Lema do piloto: Eu não tenho mais para o que viver, por isso eu morrerei para que você viva.
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Conto criado como backstory para um personagem do RPG de mesa Lancer.